Assumptos do dia (8) A espiral da gritaria
As redes sociais são sobretudo utilizadas por pessoas das chamadas elites nacionais e estas andaram nos últimos dias numa lufa-lufa em torno da co-adopção por casais homossexuais. Pronunciei-me no passado sobre o tema, mas os argumentos que utilizei (contrários) não fazem a partir de agora grande sentido, pois a co-adopção leva necessariamente à adopção.
Qualquer obstáculo à expansão do universo seria discriminatório e absurdo. A lei agora aprovada beneficia potencialmente as crianças já adoptadas por um dos membros do casal. Terá essa criança óbvias vantagens em caso de morte súbita do pai ou da mãe, por exemplo. Se eu fosse deputado, teria votado a favor desta lei, que tem pelo menos este elemento de justiça.
O parlamento decidiu e o post não é sobre a co-adopção, mas sobre a forma das discussões. O que mais me impressionou desta vez foi a ausência de debate e a crispação das diferentes posições, incluindo insultos, rasgar de vestes, retórica sobre alegados avanços civilizacionais, um rebuliço impróprio para cardíacos, homofobia acompanhada pela intolerância oposta.
Sendo este um assunto lateral na vida da maior parte dos portugueses, surpreende a tensão revelada pela fúria da maioria das posições. Os dois campos recusam-se a ouvir a argumentação do outro lado (e há bons argumentos dos dois lados).
A crítica tornou-se impossível. Alguém que escreva uma tontaria e seja criticado por isso, sai à luta com duas pedras na mão. Isto é válido para qualquer debate, do insignificante ao decisivo.
Portugal vive numa espécie de desassossego, que terá certamente raízes na crise financeira, mas não apenas aí. Sobre os assuntos verdadeiramente importantes, a discussão tornou-se nula. Os factos são inutilidades. A comunicação social parece ter perdido o norte, embrulhada na verdadeira espiral recessiva, a da seriedade, onde cada notícia má tem de ser pior ainda.
Dou apenas um exemplo. Ontem, as televisões repetiam que o desemprego aumentara em 70 mil pessoas em Abril. Achei estranhíssimo, pois o número de desempregados está a crescer 10 mil pessoas por mês, e não 70 mil. Quando li a fonte original, os valores de Abril eram homólogos, anuais, sendo dados do Instituto do Emprego e da Formação Profissional, sempre lisonjeiros quando o desemprego aumenta. Afinal, eram 70 mil num ano, o que aliás fica aquém da realidade, que corresponde a cerca de 200 mil empregos perdidos num ano. No último trimestre de 2012, o fenómeno acelerou. Perderam-se empregos a ritmo acima de 10 mil mensais, na realidade quase 30 mil, ou mil diários durante três meses.
Uma catástrofe, sem dúvida, que entretanto abrandou para os tais 10 mil. E lá surge o mito do costume, que isto é fruto da “austeridade” , como se as empresas não continuassem carregadas de dívidas e muitas delas à beira do colapso, em reestruturações violentas.
Estes assuntos, nas redes sociais, são tratados com ligeireza e superficialidade. O discurso das pessoas é geralmente de tipo neo-realista, com apelos à revolta e o arraso dos políticos. Há muitas variantes e abunda o clássico que, no mesmo texto, defende o respeito pela Constituição e a demissão imediata do Governo. A consagração da constitucionalidade selectiva. Muitas pessoas acham que se isto piorar, vai melhorar por milagre. Acham que o País não está falido, nem sequer sob resgate. Não tem de resolver os seus problemas de falta de competitividade nem de completar o ajustamento, que termina daqui a um ano. Vamos bater o pé à troika e até sair do euro alegremente, que nada nos pode acontecer de pior. Morrer na praia é considerado inteligente.
Num país que se mantém corporativo, onde certas elites gozam de privilégios bem estabelecidos, é difícil fazer reformas. Mais difícil será fazê-las num ambiente de gritaria permanente e de absoluta intolerância à crítica.
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E, no entanto, se não mudar, este País não poderá permanecer na zona euro e talvez na União Europeia. Ao contrário do que afirmam os comentadores, sempre a culparem a “inacção europeia” pela crise, a Europa mudou muito nos últimos dois anos, adoptando um fundo de estabilidade financeira segundo o modelo do FMI, um tratado orçamental que reforça os poderes de supervisão e controlo dos orçamentos na zona euro e ainda uma união bancária (já aprovada), cujo conteúdo exacto está em negociação. Esta enorme transformação é ignorada pelas nossas elites, que continuam a descrever a UE como sendo uma confusão informe, um desastre igual ao nosso.
Esta fantasia é repetida até à exaustão. Devíamos estar a discutir as mudanças em curso na Europa, sem pedantismos e tentando analisar friamente as suas consequências, mas cresce na nossa sociedade uma vozearia populista que abafa todas as migalhas de bom senso.