As verdadeiras vítimas nunca entendem
Na sua humilhação, a Grécia começa a mostrar sinais de uma terrível atracção pelo abismo. George Papandreou diz que chegou um momento de catarse e vai convocar um referendo sobre o plano de ajuda externa europeu. Os enviados da troika são descritos na imprensa como "guardas prisionais" e uma manifestação de protesto interrompeu uma parada militar (coisa grave na Grécia). O ministro das finanças foi hospitalizado com um colapso temporário (dores de barriga) e a oposição não diz coisa com coisa. Os políticos perderam o norte: não se vislumbra a possibilidade do resgate passar em referendo e, de qualquer forma, não há tempo para resolver a questão.
O plano europeu não acabava com o problema (outra palavra grega), mas ganhava tempo. Aliás, tudo indica que a questão da zona euro não fique resolvida antes das eleições alemãs de 2013, devido à complexidade das soluções e à escolha da chanceler Angela Merkel de proceder de forma faseada. Mas um referendo é pior do que um tiro no pé: a recusa do plano será bem mais dramática do que a sua aceitação, pois implica uma reestruturação desordenada da dívida. Onde está a democracia de se perguntar a um povo se prefere ser humilhado ou agredido?
Ou seja, a irresponsabilidade dos políticos gregos está a enviar a Grécia para uma solução intragável: a própria saída do euro, o que significa a saída da União Europeia; a prazo, talvez um golpe militar que reponha a ordem e a autoridade do Estado; a suspensão da democracia.
Este começa a ser o maior fiasco europeu desde a guerra da Bósnia.
A arquitectura do euro tinha de ser repensada, mas com a possível saída de um país parece que o projecto terá de ser reescrito. As políticas de apoio a regiões em choques assimétricos também falharam: como se explica que todos os países da coesão estejam em dificuldades? Actualmente dividida em três partes, a UE fragmenta-se também no seu núcleo duro da zona euro.
Não contem com a razão nos assuntos humanos. São muitos os episódios de suicídios colectivos, de países inteiros a escolherem o terror, de pânicos e fugas para a frente, de sociedades em colapso rápido. E os colapsos são sempre rápidos.
Num dos grandes contos da língua portuguesa, Estrada 43, de José Cardoso Pires, há um cão como Kanellos. Aliás, sem esta figura, o conto seria banal. O autor cria uma personagem que não percebe os humanos. Ladra quando devia ficar calado, não faz nada quando devia morder. E o lado patético do pobre cão, que acaba sempre por levar um pontapé, quer do capataz, quer dos trabalhadores, torna-se no ponto verdadeiramente tocante do texto.
Quando vejo notícias da Grécia, lembro-me de Kanellos e lembro-me deste conto. As vítimas, as verdadeiras, nunca entendem.