Indignações políticas...
... ou, “em casa onde não há pão, todos ralham sem razão”!
Há certos tipos de indignações colectivas que nos são caras. A tal ponto que, mais tarde ou mais cedo, sempre sem muita reflexão, são adoptadas como pressupostos do discurso dominante, do mainstream mediático. Parece que está em curso a formação de uma outra dessas indignações: a democracia foi capturada pelos mercados financeiros, pois, recentemente, dois primeiros-ministros caíram sem ser nas urnas!
Relativamente a Berlusconi, é interessante notar que muitos dos que agora dizem isso e referem a sua queda como exemplo de captura da democracia pelos ditos mercados, há bem pouco tempo berravam contra ele, contra os seus desmandos e não se preocupavam com o pormenor, também ele democrático, de terem sido os italianos, nas urnas, a elege-lo!
Mas, voltando à captura da democracia pelos mercados, o facto é que, bem vistas as coisas, há muito que a própria lógica e justificação democrática já não se cinge, apenas, ao voto e à mudança de governantes pelo voto (pelo menos, directo e nacional). Afirmaram-se outras dimensões da democracia e, mais rigorosamente, da lógica do Estado de Direito democrático. Pelo menos, da sua própria legitimação. Por exemplo, toda a afirmação dos Direitos do Homem, num plano transnacional, sobrepondo-se às vontades dos governos, imediata e circunstancialmente eleitos, nos seus "cantinhos" nacionais,
é disso um exemplo. Idem, idem, com a lógica de defesa do ambiente (outro exemplo) que, hoje, faria corar de vergonha (se, porventura, houvesse memória política) políticos e estadistas incontestados como LULA DA SILVA que, em tempos, muito antes de ter sido Presidente e a propósito da Amazónia, disse, publicamente, que se o mundo quer a Amazónia preservada e sem árvores cortadas por empresas japonesas, então que a pague (ao Brasil, bem entendido).
A denominada “democracia europeia”, conceptualmente desenvolvida (embora de forma muito tacteada) pelos constitucionalistas, bem assim como a “ingerência por razões humanitárias”, legitimam-se numa ordem de valores que se entende, hoje, ser um fundamento incontornável da legitimidade e do exercício do poder democrático. Fundamento que ultrapassa a mera lógica vestefaliana que vê a democracia ancorada (capturada) pelos quadros rígidos do Estado nacional clássico. Ou seja, há muito que a democracia já não se limita ao direito de mudar governos apenas pelo voto dos cidadãos nacionais.
Quanto à relação entre essa democracia, limitada ao voto directo, e os mercados financeiros, claro está que as suas lógicas respectivas são, no limite, antagónicas. O interesse do capital não é o interesse democrático; os governos democráticos servem-se dos mercados financeiros não por razões éticas ou democráticas, mas apenas porque precisam deles para financiarem a sua acção.
O problema está no recurso intenso, ordinário e "adicto" a esses mercados para se sustentar uma dívida pública imprescindível àquilo que entendemos, hoje, dever ser a função do Estado. O problema está, portanto, no Estado, naquilo que é a acção tradicional desse Estado e na sua relação com os ditos mercados. Relação que - além de procurada pelos Estados, democráticos e não democráticos - pelo que se vê, não é saudável. E é consequência (não a causa!) de uma "estranha forma de ser" Estado que pode aniquilar a democracia (qualquer que seja o seu entendimento).