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Forte Apache

O que os europeus não querem

Luís Naves, 13.11.11

Surgem muitos comentários sobre a demissão de Silvio Berlusconi e quero levantar aqui uma questão algo diferente, começando por criticar os críticos. Ferreira Fernandes (já linkado pelo Ricardo Vicente) escreve isto. Pedro Correia escreveu este post em Delito de Opinião, onde Luis M. Jorge escreve isto (teoria da conspiração). Recomendo a leitura dos companheiros de blogue, mais abaixo. Pedro M. Froufe resume a tese dos críticos de forma muito interessante, como se houvesse alguma coisa de especial no facto de um governo cair antes de eleições antecipadas, mas admitindo a contradição entre os interesses dos mercados e das democracias, o que me parece evidente.

Ontem vi na televisão vários comentadores a criticar a Europa com argumentos semelhantes aos citados. Julgo haver aqui mais do que um equívoco: os autores estão muito preocupados com formalidades, escrevem como se as Constituições tivessem sido violadas e omitem as consequências de anos de política disfuncional. A meu ver, também atribuem aos líderes europeus uma intenção que é exactamente a inversa da real. As situações grega e italiana correspondem ao que os europeus não querem. 

 

Começando pelas omissões. Em primeiro lugar, Silvio Berlusconi era já um primeiro-ministro a prazo. O seu governo iria cair provavelmente em Janeiro; de qualquer forma, não dependia dele, pois a sua coligação Povo da Liberdade perdera há um ano a maioria e dependia dos votos favoráveis de um grupo de dissidentes ligado a Gianfranco Fini. O seu Governo sobreviveu através de um estratagema, sucessivas moções de confiança que os deputados de Fini iam aprovando, até ao dia considerado ideal para o derrube.

Sendo o Executivo frágil, era também pouco credível, para os eleitores, para os parceiros europeus, para os mercados. Berlusconi venceu muitas eleições e esteve no poder oito dos últimos dez anos, mas não conseguiu resolver os problemas da economia italiana. No último ano, o seu poder era de tal forma precário, que a situação financeira foi piorando. Incapaz de tomar decisões impopulares, mas que eram necessárias, o Governo transformou-se num problema, não apenas para a Itália, mas para toda a UE.

A queda final ocorreu numa votação do orçamento em que Berlusconi perdeu finalmente a maioria, obtendo apenas 308 votos (precisava de 316). O orçamento passou porque todos os outros deputados não votaram. Fini e a Liga Norte de Umberto Bossi (com grande força entre os industriais mais afectados pela crise) tiraram o tapete a Berlusconi. Toda a sequência se passou de acordo com a Constituição, foi negociada pelos partidos, o próximo primeiro-ministro será nomeado pelo presidente, haverá eleições antecipadas.

Se a situação da Itália fosse normal, Berlusconi ficaria como primeiro-ministro de gestão até às eleições, mas a situação não é normal, as taxas de juro das obrigações a dez anos passaram esta semana os 7% e os mercados funcionam na segunda-feira. Um governo de gestão levaria as taxas de juro para valores insustentáveis e transformava a crise política numa catástrofe. Então, foi criado um governo tecnocrático, para governar o país nos próximos dois meses, até às eleições. Este governo tem o apoio dos partidos, possui maioria no parlamento e é chefiado por uma figura credível internacionalmente (tudo indica que será Mario Monti, um antigo comissário europeu nomeado por Berlusconi e prestigiada figura do centro-direita).

A democracia não foi interrompida, as instituições funcionaram, não houve nenhuma conspiração para enganar o povo italiano e, certamente, os inimigos de Berlusconi têm razões para celebrar.

 

Neste episódio, os comentadores observam uma mudança na UE, a meu ver acertadamente, mas julgo que lhes está a escapar o sentido essencial dessa mudança.

A instabilidade política é uma das causas centrais das dificuldades financeiras na Europa. Se os mercados não acreditam na capacidade de um governo de aplicar medidas necessárias, então vão traduzir essa falta de credibilidade nas taxas de juro da dívida soberana. Se um país não tem soluções internas, é pressionado nos mercados.

Vários países sentiram isto na pele, incluindo Portugal, onde o Governo de José Sócrates adiou medidas importantes, confundindo a propaganda interna com a percepção dos mercados e destruindo a pouca credibilidade que tinha. Resultado, pedido de ajuda externa atrasado, medidas mais duras do que seria necessário, população mal informada, um ano perdido.

A Irlanda, Portugal e, no dia 20, a Espanha puseram a casa em ordem e efectuaram eleições, com os eleitorados a elegerem governos estáveis, que terão quatro anos para tomar decisões. Se têm condições para conseguir, isso é outra questão.

 

Itália e Grécia surgem com esta fase intermédia de governos de salvação chefiados por tecnocratas com boa imagem no exterior. E os observadores falam em interrupção da democracia (um tiro ao lado), quando deviam falar de outra coisa: por que razão não há mecanismos na Europa que impeçam um país de prejudicar os vizinhos?

Todos ouvimos falar das gritarias ocasionais no Conselho Europeu e das bicadas trocadas pelos líderes em público, mas os tratados não permitem que um Estado interfira na vida política de outro, apesar da realidade permitir que um governo irresponsável de um país cause um agravamento da situação financeira dos restantes, como aconteceu com a Itália e a Grécia nas últimas semanas.

A actual crise, a meu ver, não levará ao fim do euro nem da União Europeia, pelo contrário, vai criar condições para uma mudança profunda do projecto. Qual é o sentido dessa mudança? Provavelmente será uma federalização capaz de alarmar os autores da defunta Constituição Europeia. No futuro, haverá um reforço dos mecanismos federais, para os Estados que quiserem seguir no núcleo duro (ou para os que puderem entrar nesse grupo talvez restrito). Os que não quiserem ou não puderem acompanhar ficarão nos patamares inferiores da integração.

A federalização da moeda única levará dois ou três anos a efectuar e ela implicará poderes para Bruxelas decidir sobre os orçamentos nacionais, incluindo harmonização fiscal, tectos de despesa, métodos de contabilidade. O Conselho Europeu terá poderes para vetar decisões de parlamentos em matéria orçamental.

Não se vislumbra a possibilidade da moeda única europeia sobreviver a prazo sem um conjunto de regras totalmente diferentes, com mais poderes para o Conselho Europeu e menos para os parlamentos nacionais.

Os casos italiano e grego não mostram aquilo que os líderes europeus querem, mas sim aquilo que eles não querem, governos frágeis e a prazo, distraídos com demasiados jogos de política interna.

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