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No lançamento do livro de Fernando Pires “Os Meus 50 anos no Diário de Notícias” estariam umas cem pessoas e achei que estavam poucas, pois ali se resumia toda a história por contar do passado glorioso dos grandes jornais de Lisboa. Depois, pensando melhor, lembrei-me dos muitos que ali faltavam e cuja saudade estava na lembrança dos presentes. O tempo leva sempre a melhor sobre a vida e faltavam ali para cima de 50, uma multidão levada pela morte e que nos teria acompanhado no aplauso ao “chefe Pires”.
Não vou falar do livro, pois ali está também um pedaço da minha vida, mas serve esta crónica para relatar a sensação cruel que tive de como tudo muda à nossa volta. E, agora, no crepúsculo dos jornais, quando o passado se ergue como algo que não regressa nunca, olho para o caminho que percorri e vejo com nostalgia, pela primeira vez, o que na altura nem cheguei a ver. É um momento amargo, perceber que passei ao lado disto, que passei ao lado daquilo, que me distraí com outras ideias, que me escapou a simpatia daquela pessoa, ou o seu talento, que àquele desprezei, o outro nunca entendi. Demasiado tarde.
Os jornais que perdemos eram feitos por pessoas empenhadas, mas não era só isso, os de hoje também são. As redacções tinham dois tipos de jornalistas, os burocratas e os intelectuais, e uso as duas palavras sem malícia (eram isso mesmo). As duas tribos tinham respeito uma pela outra e completavam-se, numa espécie de casamento. Os que trabalhavam na maquinaria eram disciplinados e aos criativos mais malucos dava-se espaço para respirar. Os jornais eram sítio de conflito, claro, mas dominados por um código de ética e por hierarquias difusas (um tipo que não mandasse nada e tivesse a melhor ideia era sempre ouvido). Fernando Pires, no seu livro, menciona essa ética jornalística, o gosto pela verdade, e refere o exemplo da palavra “camarada”, usada por todos, mas sem qualquer ideologia. As pessoas tratavam-se por “tu”. O “chefe” Pires impunha um tal respeito que foi uma das únicas pessoas que sempre tratei por “senhor”.
O jornalismo mudou. É hoje uma profissão mais ligada ao poder e ao dinheiro, dominada por gestores segundo os quais entre uma salsicha e uma informação não existe diferença substancial. Pelo caminho ficou a inocência representada por personagens coloridas e figuras de romance. Nas redacções pairavam “cromos” e artistas, havia conversas delirantes, intelectuais e doutores, uns que pareciam não fazer nada mas que tinham a frase certa, outros que trabalhavam como uns loucos e casavam com o jornal, pareciam viver no jornal, respiravam o jornal. A diversidade perdeu-se. Hoje, os redactores são jovens e o seu único objectivo é enriquecer, embora estejam transformados em operários da escrita.
Há muitos anos, entrevistei um realizador de cinema, Samuel Fuller, e ele contou-me que tinha sido jornalista, começara como repórter, contratado por um velho chefe de redacção, à maneira do “chefe” Pires. Contou-me a história: “Queres ser jornalista?”, perguntou-lhe o veterano; Fuller respondeu que sim; “Queres ser rico?”. Fuller disse que sim; “Então, não sejas jornalista”, avisou o chefe.
Nota: Obrigado, Fernando Pires, por tudo aquilo que me ensinou.