O Grande Sucessor
A Coreia do Norte é certamente o país mais estranho do mundo e uma cruel ditadura comunista, mas também um regime dinástico, ultra-militarizado, com tecnologia nuclear, onde as populações estão isoladas do exterior, como se vivessem em Marte. O desaparecimento do segundo ditador da dinastia, Kim Jong-il, e a sua mais que provável substituição pelo filho, Kim Jong-un, anuncia tempos perigosos. Entretanto, já existe um título para o novo líder, “O Grande Sucessor” (os monarcas não têm apenas o nome, mas sobretudo o título, à maneira chinesa).
A imagem em cima é da minha autoria e foi obtida num momento de sorte, quando visitei a Coreia do Norte em 1989. O grupo que se vê a fazer a vénia era de coreanos emigrados no Japão. Na realidade, limitei-me a enquadrar e esperei pelo momento certo, que durou alguns segundos. A fotografia ficou ligeiramente sobreexposta no céu, o que é pena, mas podemos apreciar a dimensão da estátua do fundador do regime, o primeiro Kim, o “Grande Líder” Kim Il-sung. Um jornalista que conheci na altura e que estava baseado no Japão disse-me que estes emigrantes se dividem entre sul e norte exactamente na proporção da população de origem: em cada quatro, três mantêm a lealdade ao sul, um ao norte. Era assim em 1989, ainda o primeiro Kim vivia.
O regime baseia-se em três pilares: culto da personalidade, isolamento e militarização. A manipulação da História e da linguagem, a demonização do exterior são características que fazem lembrar o romance 1984 de George Orwell. Uma visita ao museu de Pyongyang é instrutiva, pois o passado é uma linha obscura e quase incompreensível e tudo começa de facto em 1912, ano do nascimento do primeiro Kim. A História é uma fantasia quase absurda. A Coreia do Norte está no centro do mundo, ou melhor, o mundo está mergulhado no nevoeiro. Há na periferia umas potências misteriosas e é tudo.
O comunismo coreano tornou-se dinástico e usa o modelo estalinista de controlo total da economia. A repressão é feroz, segundo se sabe pelos poucos sobreviventes que conseguiram contar a sua história. Daí que haja um ambiente de histeria e medo: quem não chorar convulsivamente pode arranjar problemas sérios e a necessidade de sobreviver faz de qualquer homem um bom actor. Podemos sentir a tentação de rir, quando vemos aquelas manifestações de choro colectivo, mas tenho pena e sinto horror. Sincera, ali, só a vontade de viver.
Em 1989, o primeiro Kim era o inventor de todas as tecnologias, autor das obras de arte e das construções do regime, engenheiro, arquitecto, cientista e grande militar. Não há muitas certezas, mas o seu passado de guerrilha anti-japonesa parece ser uma falsificação. Kim era um burocrata treinado por Moscovo e que tomou o poder na facção comunista que controlava com ajuda russa uma zona remota do norte do país. No fim da guerra, expulsos os japoneses, a Coreia ficou dividida pelo paralelo 38 e o impetuoso líder comunista lançou um ataque contra o sul, aproveitando a rivalidade entre China e URSS. Na origem da Guerra da Coreia terá estado a megalomania da personagem. Além da total fantasia sobre o passado, em 1989 o regime tinha outro elemento, a ideologia ju-che, uma ideia de autarcia ou total isolamento nacionalista, associada ao poder do Estado, que por sua vez era o poder da liderança comunista e em particular do Grande Líder.
O segundo Kim, com o título de “Querido Líder”, que tomou o poder em 1994, após longo período de preparação, não tinha as qualidades do primeiro. As crónicas diziam que era um homem irascível e algo estúpido, caprichoso e imprevisível. Gostava dos luxos, de mulheres e tinha a obsessão do cinema, sendo relativamente famoso o rapto de uma actriz sul-coreana (Choi Eun-hee) e do seu marido realizador, em 1978, só porque Kim Jong-il (que ainda era apenas herdeiro) gostava dos filmes e queria organizar uma indústria. A dupla de raptados conseguiu escapar alguns anos mais tarde, sorte que não tiveram muitos dos anónimos cidadãos japoneses raptados em operações de comando, e levados para a Coreia para ensinarem japonês.
Com o fim do bloco socialista e o colapso da URSS, o regime entrou numa fase de maior isolamento e de grandes dificuldades. Sem ajuda soviética, alimentar um exército com mais de um milhão de homens deu origem a crises regulares, agravadas por inundações catastróficas, que se transformaram em fomes em larga escala, entre 1995 e 1997. A estimativa inferior para o número de vítimas é de 900 mil mortos. Na mesma altura, o regime conseguiu manter a repressão e chantagear o ocidente com o desenvolvimento de um programa nuclear. A Coreia do Norte tem bombas atómicas (pelo menos meia dúzia) e usou o programa nuclear, na década passada, para obter ajuda alimentar que evitou novas fomes. No entanto, para serem credíveis, os comunistas norte-coreanos agiram várias vezes de forma agressiva, criando incidentes militares nos limites da declaração de guerra. É este clima de paranóia que torna a península coreana extremamente perigosa.
O regime, no fundo, é altamente instável. Há quem diga que o verdadeiro poder está já nas mãos dos militares ou, em alternativa, nas do cunhado do segundo Kim e tio do terceiro, Chang Sung-taek. São abundantes as teorias, mas escasseiam os factos. O exército é gigantesco e o corpo de oficiais bastante fanatizado pela necessidade (cair em desgraça é condenar toda a família ou perder os raros privilégios). As crónicas afirmam que o terceiro Kim é ainda mais caprichoso e violento do que o pai, além disso imoderado pela idade, pois tem entre 26 e 28 anos. Se tiver poder real, a Coreia do Norte poderá transformar-se num vizinho muito perigoso, pois não é apenas o país que está isolado, mas também os líderes, cuja leitura da realidade vai ficando mais alucinada.
O eventual colapso do regime seria um perigo para toda a região e a transição suave é pouco provável. O sistema dinástico pode parecer estável, à primeira vista, mas revela-se um péssimo sistema político, sobretudo quando associado a ditaduras e quando os líderes têm poder sem restrições. Nessa altura, revela-se a natureza humana no seu pior, tal como aconteceu no passado a alguns imperadores chineses ou romanos.
Por tudo isto, as cenas a que estamos a assistir, de multidões em lágrimas, não são pela alma do “Querido Líder”, mas pelo terrível destino de um povo sem futuro. Ficando tudo na mesma ou havendo uma ruptura, os norte-coreanos vão sofrer horrores.