A lógica cristalina
António e Laura contraíram há dez anos um empréstimo para a compra de um apartamento, cuja prestação cabia perfeitamente dentro do orçamento familiar, porque ambos estavam empregados, aliás numa sólida empresa onde eram estimados.
A empresa não resistiu à crise - faliu.
Vão ficar sem a casa. E o banco vai pô-la à venda num mercado entretanto deprimido, a um preço que não chega para cobrir integralmente o remanescente da dívida.
Parece que, mesmo assim, António e Laura não se livram: se e quando voltarem a ter emprego, a dívida e os juros respectivos estarão à espera deles.
Parece que há quem (incluindo o legislador e o Banco de Portugal) ache isto bem: contratos são contratos, quem não cumpriu foram eles, a garantia real é subsidiária, etc. etc.
Alteração das circunstâncias? Risco do prestamista? Nicles.
Um banco a correr riscos, como está abundantemente demonstrado entre nós (salvo pelo insignificante BPP, que de toda a maneira era um desprezível banco de "ricos") é uma contradição nos termos: quem corre os riscos somos nós, contribuintes. Os accionistas também, coitados, via desvalorização dos títulos. Agora, gestores não, mesmo que o Estado lhes cubra as asneiras do passado e lhes garanta que as podem continuar a fazer no futuro, logo que a oportunidade surja, e lhes permita no entretanto serem obscenamente gratificados pela competência que evidentemente não têm nem tiveram.
E ao António e à Laura mais lhes vale trabalharem no mercado negro, se conseguirem: é que, se não fosse assim, isso poderia "tornar o crédito à habitação ainda mais oneroso para o cliente".
Não se está mesmo a ver a lógica cristalina? Eu estou.