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Forte Apache

Preso por dar vivas à liberdade

Pedro Correia, 10.04.12

 

«Protege-te dos vacilantes /

Porque um dia saberão o que não querem»

Heberto Padilla

 

Vários dias depois, interrogo-me sobre o destino daquele homem que se encheu de coragem e gritou "abaixo o comunismo, viva a liberdade" pouco antes do início da vasta missa campal celebrada pelo Papa na Praça Antonio Maceo, em Santiago, segunda maior cidade de Cuba. Foi um grito insensato, atendendo ao contexto, mas as figuras tocadas pelo heroísmo não costumam caracterizar-se pela sensatez.

Vejo e ouço rostos e nomes de assassinos diariamente nas páginas dos jornais e nas imagens dos telediários. Por lamentável contraste, ignoramos tantas vezes a identidade destes heróis solitários que ousam proclamar em voz bem alta o que milhões de concidadãos pensam em países agrilhoados e amordaçados. Ao ver aqueles fugazes segundos de reportagem televisiva em que vários esbirros da ditadura cubana rodeavam o indivíduo e o levavam para parte incerta, pensei que aquela era a perfeita metáfora de uma revolução falhada: 53 anos após a vitoriosa entrada dos barbudos da Serra Maestra em Havana, basta alguém proclamar uma frase em louvor da liberdade para ser riscado da convivência cívica.

Infelizmente, nada que deva surpreender-nos: em Cuba qualquer cidadão pode ser detido a todo o momento com acusações tão vagas e tão implacáveis como "faltar ao respeito aos símbolos pátrios", algo que muitos comunistas portugueses associariam de imediato à ditadura salazarista embora estejam sempre na primeira linha do aplauso ao chamado "socialismo cubano".

O problema não reside apenas na facilidade com que se é preso em Cuba. Há "flagrantes violações da dignidade humana" nos cárceres castristas, como alertam opositores à ditadura, entre eles o médico Óscar Elías Biscet, que sabe muito bem do que fala: esteve 12 anos preso por delito de opinião.

Pensava em tudo isto enquanto acompanhava a missa papal em Santiago sintonizando o canal oficial cubano Cubavisión, de que disponho através da TV Cabo. Dir-se-ia um canal devoto, tanta era a solene deferência perante Bento XVI nesta sua inédita peregrinação ao país que Fidel Castro fez proclamar em 1976 como estado ateu até à revisão constitucional de 1992.

 

Escuto com alguma emoção o Credo recitado em coro por largos milhares de vozes. Na primeira fila da assistência à cerimónia litúrgica alinham-se respeitosamente vários membros da nomenclatura cubana, com destaque para o "general do exército Raúl Castro, presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros", como não se cansa de assinalar a locutora da Cubavisión. O irmão mais novo e herdeiro de Fidel saudou o Papa chamando-lhe "Santidade", algo impensável noutros tempos. Quase todos os bens da Igreja Católica foram "nacionalizados" após 1959 e dezenas de sacerdotes acabaram por ser expulsos da ilha, onde o ensino religioso foi proibido. Até 1991 um cidadão cubano tinha de se declarar "não crente" para ingressar no Partido Comunista.

"Ficaram para trás os anos de fanatismo anti-religioso em que as pessoas eram expulsas do trabalho ou da escola só por terem em casa um quadro do Sagrado Coração de Jesus", escreveu Yoani Sánchez no El País. O mesmo jornal que viu o seu correspondente em Havana, Mauricio Vincent, ser expulso da ilha em Setembro de 2011: os seus artigos independentes irritavam as autoridades comunistas.

 

Cuba deve avançar "pelos caminhos da justiça, da paz, da liberdade e da reconciliação", disse o Papa na sua homilia em Santiago enquanto a chuva caía, com persistência muito tropical. As imagens da Cubavisión focavam a multidão compacta, mas quase sempre à distância, com raros planos aproximados. A política contamina tudo - até a realização televisiva. O general Raúl Castro cumprimentou o Sumo Pontífice com uma semivénia respeitosa, a poucos metros da imagem da padroeira cubana, à qual Ernest Hemingway - cubano por opção e adopção - ofereceu a medalha recebida em 1954 pela Academia de Estocolmo que o distinguiu com o Nobel da Literatura.

Hemingway viu-se forçado a abandonar Cuba em 1960, o que lhe apressou a morte. Vivesse ele hoje e talvez acabasse por escrever um romance sobre aquele desassombrado cubano detido simplesmente por dar vivas à liberdade - anónimo herói da vida real. Robert Jordan - o protagonista de Por Quem os Sinos Dobram - gostaria de o conhecer. E era bem capaz de juntar a sua voz àquele corajoso brado solitário.

Foto: Enrique de la Osa (Reuters)

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