Vinte anos depois do Nevermind e a ruptura de um certo modelo de sociedade
Quando se parte para uma análise sistémica de uma qualquer comunidade, é importante nunca descurar o seu “ambiente”. Compreender a origem das tendências culturais, dos comportamentos sociais ou dos modelos ideológicos que orientam e ditam políticas de governança é essencial para se fazer uma leitura correcta das sociedades e das suas perturbações.
Na concretização desse exercício intelectual, complementado com uma forte componente empírica, parte-se, por vezes, daquilo que é geral e mais evidente até se chegar ao aspecto (aparentemente) mais mundano, mas que olhado em retrospectiva se percebe que funciona como catalisador ou dinamizar para mudanças importantes.
A verdade é que todos os aspectos da sociedade se relacionam com a governança dos povos. Não apenas a política e a economia, mas também a cultura, a religião, o desporto e por diante. É importante perceber o afecto e a ligação que as pessoas têm com estas áreas de interesse. Mas, é ainda mais profícuo para um governante compreender os interesses comuns que servem de elos de união entre determinados grupos inseridos numa sociedade.
A resposta não se encontra, certamente, nas grandes reflexões políticas e económicas que por aí se ouvem ou se lêem assinadas pelos “iluminados” do regime. E porquê? Por uma razão muito simples: não sabem. Porque essas mesmas mentes “esclarecidas” vêem a sociedade única e exclusivamente através do espectro da política e da economia. Para esta gente, não há mundo para além disto. É o desconhecimento e a ignorância de uma "rua" que dizem conhecer, mas na qual nunca caminham.
Que o leitor não tenha dúvidas, trata-se de “meia dúzia” de "ilustres" entre os 50 e os 70 anos, todos “amigos” neste pequeno burgo. Dotados de um saber enciclopédico (que é um bem valioso), reconhece-se, mas que de pouco serve em termos analíticos se não for complementado com o conhecimento das dinâmicas e das tendências quotidianas destes tempos contemporâneos.
Como é possível que estes mesmos “iluminados” falem com tanta propriedade sobre a sociedade, quando lhes escapa tanto?
A verdade é que diariamente nos jornais ou nas televisões, mas também nas universidades, nas empresas ou nas entidades públicas, essa classe instalada de comentadores, de gestores, de empresários ou de professores universitários vai falando do seu púlpito, quase sempre com um tom sobranceiro.
Tudo isto vem a propósito dos 20 anos volvidos sobre o lançamento do álbum Nevermind dos Nirvana e que se assinalam este Sábado (24), com iniciativas um pouco por todo o mundo.
Neste momento, poderá estar o leitor a perguntar o que tem uma coisa a ver com a outra.
Mas, olhando em retrospectiva, percebe-se hoje que o Nevermind não foi apenas um acontecimento musical e cultural oriundo de Seattle. Foi também uma nascente de tendências, de comportamentos e de novos paradigmas de pensamento para o mundo ocidental, veiculados por uma nova geração que, de forma mais ou menos directa, influenciou a sociedade e condicionou as políticas de governação.
Aliás, vendo bem as coisas à luz da teoria de Nassim Nicholas Taleb, o autor destas linhas ousaria dizer que o Nevermind tem as características de um “cisne negro” (acontecimentos de grande escala, que podem ser negativos ou positivos, e que fogem à normalidade estatística, sendo largamente imprevisíveis para o observador. Ver mais aqui e aqui.)
Como escrevia alguém, o Nevermind foi responsável pelo último grande movimento musical do século XX. Porém, foi mais do que isso. Foi um manual de se estar em sociedade para uma boa parte da juventude de então.
O Nevermind apelava a uma simplicidade até então desconhecida. A música Come As You Are é um exemplo fascinante dessa mesma simplicidade, com uma letra libertadora, que incentivava os jovens a assumirem o seu caminho numa sociedade cada vez mais competitiva e castradora. O Nevermind exortava ainda à criatividade sem limites, acompanhada de uma certa agressividade, por vezes, algo ingénua, mas suficiente para marcar uma posição. O Nevermind espoletou uma dinâmica de ruptura com um modelo de sociedade instituído.
Relembre-se que após uma década de efervescência do movimento "grunge", para o qual contribuíram bandas como os Pearl Jam (que estão também a comemorar 20 anos, mas de carreira), os Alice in Chains, os Soundgarden, os Temple of The Dog (um álbum brilhante) ou os Mother Love Bone (a origem de todas as coisas), Seattle viria a ser em Novembro de 1999, por ocasião de uma cimeira da Organização Mundial de Comércio (OMC), palco daquela que ficaria para a História como a primeira grande manifestação anti-globalização.
Enfim, muito mais haveria a dizer, mas o que importa aqui é problematizar sobre a forma de como estes fenómenos (não) são percepcionados por essas tais "mentes" conhecedoras que por aqui andam nesta praça. A verdade é que sem a compreensão desses mesmos fenómenos, dificilmente se consegue perceber as sociedades e as dinâmicas dos seus cidadãos.
Já agora, e para terminar, o autor destas linhas confessa que tem alguma curiosidade para saber se Marcelo e “companhia” fazem alguma ideia do que seja o Nevermind.