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Forte Apache

Fronteiras: Sobre a escrita (1)

Luís Naves, 26.09.11

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O suplemento literário do El Pais, Babelia, publicava na semana passada um extenso artigo sobre “escritores que mereciam ter mais leitores” e concluía, sem demonstração, que havia acasos a tornarem alguns autores obscuros e ignorados pelo público, enquanto outros brilhavam no firmamento da literatura espanhola. Fiquei meio desiludido: uma boa ideia de jornal com uma concretização algo fraca e sem novidades. Mas, enfim, se o acaso explica a ausência da fama, por que razão há tão poucos famosos em qualquer literatura? Só um em cem consegue chegar ao público e os restantes permanecem no anonimato.
Admito a validade da tese do acaso. Uns, pouquíssimos, têm sorte. Como teve António Muñoz Molina, que escreve uma coluna no Babelia e que, na mesma semana, algumas páginas à frente, conta o início da sua carreira. Podia ter sido apenas mais um escritor falhado, mas estar no momento certo à hora certa e ter amigos generosos permitiu-lhe sair do anonimato. Curiosamente, no seu site oficial, Molina tem uma interessante epígrafe, a desencantada frase do poeta António Machado, que numa má tradução (minha) diz mais ou menos assim: “na política, como na arte, as novidades apedrejam as obras originais”. Concordando com a tese de que não há nenhuma razão para alguém ter êxito, de que não existe uma fórmula mágica para conseguir conquistar leitores, Molina conclui, num texto magnífico, que cada autor deve seguir o seu instinto e escrever o que acha ter valor para os leitores, sem se preocupar com mais nada.

 

Uma parte da fama é questão de moda. E, seguindo a ideia de Machado, arte e política são parecidas na sua crueldade com o que deixou de ser novidade. Ou sublinho a ideia de que há ciclos inevitáveis, que acompanham o envelhecimento humano. O poeta, aliás, passou muito mal durante a guerra civil e é muitas vezes citado num poema famoso que se tornou frase de moda, embora eu julgue que o verso é ligeiramente distorcido e que na forma popular perde bastante da sua força. A frase que se tornou lugar-comum é “o caminho faz-se caminhando”; mas no poema de Machado diz-se “Caminhante, não há caminho/ faz-se caminho ao andar”. A versão poética é mais dramática, pois é ao andar que se faz caminho e não “o caminho”. O poema original, aliás, é sobre a incerteza e a dificuldade de existir, mas sobretudo sobre a via que foi percorrida e que não será de novo pisada; não há maneira de voltar atrás e ninguém pode verdadeiramente dizer que sabe para onde vai; o poeta está com os pés no território da nostalgia e a queda do artigo muda todo o sentido da frase, tornando a vida num vasto mistério. O lugar-comum, por outro lado, é despreocupado e confiante, o caminho está em frente, basta caminhar com passo firme.
Machado, um poeta que observa com horror a maldade humana, o colapso do seu mundo, a guerra civil, mas que mesmo assim interpreta a beleza que o rodeia, é uma figura de tragédia também porque o lugar-comum o transforma em moda e o apedreja.

A arte pode exprimir ideias complexas em poucas palavras de aparência simples. Como aqui faz o americano Robert Frost:

 

A QUESTION
A voice said, Look me in the stars
And tell me truly, men of earth,
If all the soul-and-body scars
Were not too much to pay for birth

 

No fim da leitura, resta-nos contemplar com espanto a perfeição da quadra. Infelizmente, na tradução para outra língua perde-se a musicalidade e sobretudo a dureza; fica o poema despido. Mas em inglês torna-se voluptuoso, vai mudando de sentido. Será isto o belo? E que génio ou demónio pode levar um homem a inventar uma frase como “look me in the stars”?
Qualquer escritor invisível sabe que jamais atingirá este grau de complexidade e aproximação ao perfeito. Por que escreve, então, o escritor desconhecido? Aproveito para introduzir aqui uma nova personagem, George Orwell. Além de meia dúzia de romances difíceis de definir (realistas e visuais, mas também críticos), Orwell escreveu obsessivamente ensaios sobre os mais variados temas. E aquilo a que se podia chamar grandes reportagens, embora trabalhos profundos e diferentes do que se faz hoje. Politics and the english language é um clássico onde o autor explica como o uso da linguagem produz confusão e reduz o pensamento político a teses simplistas. Há outro texto, também de 1946, Why I write, que merece uma pequena reflexão:
Após explicar a sua formação como escritor e os truques mentais que usava, Orwell identifica quatro motivos para escrever, comuns a todos os autores, embora em maior ou menor grau. São eles a vaidade, o gozo estético, o impulso histórico e a intenção política. Em resumo, o autor acredita que em cada escritor existe o egoísmo de querer brilhar perante os outros, o instinto de embelezar uma frase, a vontade de deixar um testemunho e, de forma surpreendente, o desejo de mudar o mundo. “A opinião de que a arte não deve ter nada a ver com política é, em si mesma, uma atitude política”, escreve Orwell.

(Amanhã, segunda parte deste texto)

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