É uma ilusão
O profeta teve uma visão do fim de mundo para dia 4 de Maio e convenceu uma multidão de fiéis que se preparou para o fim iminente. Chegado o dia 4 de Maio, o mundo não acabou e os fiéis ficaram genuinamente surpreendidos. Pensaram então os seguidores que estavam perante uma falsa profecia? Não, pelo contrário: acreditaram no profeta quando este disse que se tinha enganado nos cálculos. Afinal, o fim do mundo era a 4 de Outubro. E começaram a fazer os preparativos para aquele importante acontecimento, esquecendo todas as dúvidas de que a ideia podia ser uma ilusão.
Vem esta história a propósito do fim iminente do euro, que é profetizado por muitos analistas pelo menos há ano e meio. A Irlanda votou a favor do Tratado Orçamental (TO), na primeira de três votações decisivas para a zona euro num espaço de semanas, seguindo-se a ratificação do documento em pelo menos mais três países, isto nos próximos dias. A ratificação está conseguida, salvo erro, em oito Estados, bastando 12 para entrar em vigor. Claro que o processo depende da assinatura alemã e da francesa (se um destes dois não ratificar, acabou), mas tudo indica que o TO pode perfeitamente ser incorporado nas previsões, mesmo acompanhado de um pacto de crescimento que está a ser negociado. Onde estão os críticos da pressa portuguesa em ratificar?
Ou muito me engano, ou o pacto de crescimento que está a ser preparado não será feito a pensar nos endividados da periferia, mas esta é outra história. O facto é que a Europa está em vias de tomar decisões relevantes. Resolver a crise espanhola exige provavelmente que haja dinheiro europeu para intervir nos bancos, o que o fundo de estabilidade não permite. Por outro lado, em França, convinha que houvesse um poder estável e que o presidente François Hollande dispensasse a coabitação e se livrasse da influência dos radicais (a esquerda de Jean-Luc Mélenchon ou a Frente Nacional de Marine Le Pen). As eleições gregas de dia 17 são fundamentais: a direita está à frente nas sondagens, com possibilidade de formar governo, mas o resultado continua a ser incerto. A vitória do SYRIZA significa muito provavelmente a saída da Grécia do euro. Pode produzir pânico, mas não se percebe bem por quê, pois a maior parte da dívida grega (o total é menos de um terço do Lehman Brothers) está nas mãos do BCE. E, enfim, a Lehman Brothers fechou portas, algo que não acontece com a Grécia, que continua a existir.
Estou a alongar-me e o ponto da crónica é de que muitas análises esquecem frequentemente as lições do passado, mesmo as lições mais evidentes. Até agora, toda a crise do euro tem sido gerida segundo os interesses das nações envolvidas. Perceber estes interesses é central na avaliação dos problemas.
Não havendo união política e não sendo possível criar uma união monetária sólida em ano e meio, os governos têm tentado desenvolver sistemas que permitam maior coordenação e respostas mais rápidas. O TO resulta de uma negociação complexa, aceitável para todos (menos para o Reino Unido), sendo a união política possível nesta fase. A Comissão e o BCE tendem a ganhar poderes, o primeiro de fiscalização de orçamentos, o segundo de supervisão bancária. Há certa dose de mutualização da dívida, com o futuro Mecanismo Europeu de Estabilidade, que substitui o actual fundo provisório que garante o nosso resgate. Acima de tudo, garante-se a confiança entre os Estados que formam a zona euro.
Para entendermos as notícias, convém não esquecer que há sempre dramatização antes das cimeiras, embora a de Junho tenha forçosamente de tomar medida, cuja eficácia depende da Europa vencer as duas eleições que faltam (França e Grécia).
A dimensão política destas questões é quase sempre minimizada nos comentários que leio. A estratégia alemã para o euro tem horror ao isolamento político da Alemanha, mas não quer avançar demasiado numa união política que os eleitores alemães considerariam intolerável. Daí a oposição aos eurobonds. Um país que se financia de forma grátis (não há oferta suficiente de obrigações alemãs nos mercados, tal é a fuga para activos seguros) não poderá compreender que agora ficou tudo muito mais caro. Os gregos choram imenso, mas os portugueses (numa situação inicial talvez mais fácil, reconheço) estão a fazer os mesmos sacrifícios, mas com boas possibilidades de equilibrarem a balança de pagamentos e o défice orçamental.
Nas discussões em Portugal, a dimensão política é sempre confundida com a da pequena intriga e da manobra táctica. Ninguém olha para os aspectos estratégicos. Em Portugal, a política é um exercício de ilusionismo: há um gesto que nos faz olhar para uma mão e o importante passa-se na outra mão.
Dou um exemplo flagrante: nos últimos dias, o país discutiu obsessivamente o chamado caso Relvas, aparentemente centrado no disse-que-disse do ministro Miguel Relvas, numa história complicadíssima, ultra-pormenorizada, de encontros fortuitos (ou não) com um ex-chefe dos serviços secretos. A história que envolve o ministro é nula. A parte relevante tem a ver com a possibilidade de espiões portugueses terem andado no passado em roda livre. Há um enredo secundário, que envolve duas empresas de comunicação social, isto num contexto de dificuldades económicas inéditas no sector e quando surge no horizonte a privatização da televisão pública, a cargo exactamente de Miguel Relvas.
Esta novela poderá ter condicionado o ministro nas suas decisões sobre a televisão, mas, para mim, o aspecto mais grave é o da ineficácia que revela nos serviços secretos. Se os espiões andam a espiar jornalistas, não procuram os terroristas. Isto implica insegurança em relação a ameaças externas e talvez ajude a explicar outras histórias, por exemplo, o nítido fiasco português na abordagem da crise da Guiné-Bissau.