Rio precipitado
Conta Eça ou Ramalho, algures, que um determinado médico, consultado por uma menina da sociedade que não se sentia bem mas não sabia com precisão onde lhe doía, exclamou:
- Mas dói-lhe a barriga ou não lhe dói a barriga? É o que se lhe pergunta!
Simpatizei de imediato com a figura deste médico com pouca paciência para frescuras, e guardo a simpatia até hoje.
Também não gosto de gente dada a complicações escusadas e discursos redondos, e por isso aprecio Rui Rio: não compra a treta do investimento público na cultura quando isso seja um transparente véu para sustentar artistas metidos a bestas; não aprecia a promiscuidade do poder político com o futebol e por isso não sacrifica no altar dos dirigentes da bola; é de boas contas e provou-o pondo as finanças do Porto em ordem; diz de modo geral o que pensa sem que por isso possamos supôr que traz um par de asas nas costas; e, sendo economista, não pertence às escolas engenhosas do "investimento público", que, entre nós e em muitos outros lugares, pretendem diminuir ao endividamento no futuro pelo expediente de o aumentar agora.
Desta vez, não andou bem: Porque caberia perguntar que autoridade tem o Estado central que tem as contas num canho para suspender a democracia local daquelas autarquias que tenham ... as contas num canho; e se Rui Rio defende para o País uma comissão administrativa quando, nas curvas da História, se tropece num Sócrates ou noutro iluminado.
O bordel da gestão autárquica é uma evidência. Mas não o é menos que uma parte do endividamento local tem sido feito para não perder apoios comunitários (que funcionam como incentivos perversos ao despesismo), para criar emprego local na ilusão de que se há emprego há necessariamente riqueza, e para criar equipamentos comunitários ao abrigo da ideia de que se é necessário e útil faz-se.
Mas estas têm sido as regras do jogo, e não apenas nos concelhos mas também nas regiões autónomas. Creio mesmo que, se quisermos encontrar um exemplo e um resumo de tudo o que está errado com a autonomia local, a Madeira é o primeiro que ocorre. Rui Rio acaso também defende uma Comissão Administrativa para a Madeira?
Depois, há legislação que pune a assunção de encargos sem cobertura orçamental, e existe o Tribunal de Contas que fiscaliza os organismos da Administração Pública. Mas essa legislação é tranquilamente desrespeitada e o Tribunal de Contas é um velho leão sem dentes.
Sucede que o legislador e os poderes da Democracia quiseram as coisas assim. E na formação da vontade desse legislador o PSD tem não pequena quota.
Razões por que o que Rio defende tem, para mim, cabimento apenas para o futuro. No presente, Rio deveria bastar-se com o contraste entre a sua administração e a de outros, inclusive vizinhos. Sossegue, Rui Rio: a opinião pública, nos casos mais gritantes, sabe distinguir.
E se com o que aconteceu no País o eleitorado ainda não aprendeu, também não aprenderá a golpes de Decretos-Lei feitos à pressa. Casa roubada, trancas à porta, diz o nosso Povo; diz bem.