A carnificina dos nossos dias
No próximo dia 1 de Setembro vai passar no King o filme “Carnage” de Roman Polanski. Deixo aqui a sugestão para quem não teve oportunidade de o ver antes. Carnage significa carnificina. Esta tradução faria bem mais sentido que “O Deus da carnificina”, até porque me parece que a carnificina não é divina, mas sim um atributo do homem.
O filme conta um episódio caricato na vida de dois casais que se cruzam na sequência de um desentendimento entre os filhos. A raiz do desentendimento é banal: um grupo de crianças onde o líder rejeita a entrada de uma criança para o grupo. Entretanto, os pais são chamados a intervir de forma a repor a ordem e argumentam o sucedido com a educação que transmitiram aos filhos. O genial de tudo isto é que os pais acabam por revelar características de conduta em sociedade bem mais absurdas e intransigentes que as adoptadas pelos filhos. Enquanto os pais se agridem verbalmente e revelam as suas falhas educativas através do entendimento que fazem dos factos, os filhos acabam por fazer as pazes, porque as crianças são bem mais sensatas, práticas e simples que muitos adultos.
Polanski dá-nos assim a conhecer uma experiência social fortíssima, pois basta colocar dois casais perfeitamente desconhecidos num espaço fechado, a discutir os métodos pedagógicos que regem o comportamento dos filhos, para desencadear os monstros que se escondem por trás das aparências da vida em comunidade. Quem nunca ouviu uma mãe ou um pai gabar os seus filhos como se fossem os melhores do mundo? Quem nunca viu uma mãe ou um pai defenderem os actos mais cruéis dos seus filhos apenas porque são os seus filhos, os mesmos com os quais se comprometeram cuidar, proteger e educar? Ter um filho é uma responsabilidade tremenda, um compromisso para a vida. Antigamente tinham-se filhos para ajudar os pais, hoje são os pais que ajudam os filhos, fruto da evolução dos tempos em que a emancipação é cada vez mais tardia.
No entanto, a abordagem social que está aqui presente é a que rege as crenças e os valores dos pais. A complexidade da vida adulta, tão exigente e permeável, é um desafio constante até para o mais atento, bondoso e respeitador ser humano. Os adultos têm de ser filhos gratos, trabalhadores responsáveis, maridos e mulheres carinhosos e pais exímios. Os vários papéis estão ainda sujeitos às contrariedades do dia-a-dia, às relações que têm com os amigos e ao desempenho de um papel social de dedicação e empenho para as causas e efeitos que governam o mundo. Por vezes, ser adulto cansa. Seria bom poder carregar num botão e de repente, por apenas uns instantes, não termos de cumprir nenhum papel a não ser o de sermos nós próprios, seres frágeis, com as nossas dúvidas e medos, e altamente falíveis.
Esta é a verdadeira carnificina dos nossos dias, que não nos dá um só segundo para sermos seres humanos, exigindo que sejamos divinos, perfeitos e complacentes.