Os homens de negro não perdoam
Os comentadores da televisão e cronistas de jornal são praticamente unânimes: a situação está a patinar, as contas públicas derrapam e a estratégia do governo não funciona. Não o dizem com todas as letras, mas vão insinuando que assim não dá, que temos de bater o pé à troika e desistir quanto antes do actual rumo. Faltam provas para mostrar aos homens de negro? Pois, lá está a execução orçamental para demonstrar a tese. Usam sempre a ironia “desvio colossal”, tentando com isso dizer que Passos Coelho não é diferente de Sócrates, e a narrativa enganadora vai entrando nos ouvidos da opinião pública, já quase convencida de que os sacrifícios não valeram a pena.
A verdade é que a troika e os mercados olham para a tendência de redução do défice e o ritmo das reformas, muito mais do que para as metas em si. Em termos relativos, Portugal fez o maior ajustamento, entre os países em dificuldades, isto pelo segundo ano consecutivo. Os números são claros, mas o mito do fracasso já está tão cristalizado, que os leitores vão resistir às próximas linhas deste texto.
Julgo que pararmos nesta fase seria morrer na praia e a condenação ao destino grego. Aliás, apesar de ter um governo que parece sério, a Grécia ainda não se livrou de sair do euro, o que equivale automaticamente a sair da UE. Esta questão não estará resolvida antes de Outubro e Atenas terá ainda de penar muito para convencer os europeus do norte de que é mais barato manterem uma Grécia que promete começar a pagar as contas do que o tiro incerto da expulsão.
A Europa, aliás, ainda não se livrou do colapso, apesar dos bons indícios de que os mercados começam a compreender a solidez relativa de algumas das decisões de Junho. Esperava-se um grande ataque, ele aconteceu, mas agora parece baixar de intensidade.
Berlim está insatisfeita e quer um grande Tratado que permita dar um salto na união política, com mais poderes para Bruxelas, para o tribunal europeu e para o Parlamento Europeu, mas a oposição de alguns países à ideia é talvez insuperável. Penso que a iniciativa ficará a meio caminho: união orçamental e bancária (decisões de Junho), mas sem grandes avanços na união política, sobretudo por oposição da França. Esta será, mesmo assim, uma enorme transformação da União Europeia, facto de importância que tem escapado à maioria dos analistas portugueses, fascinados com a tese errada de que as cimeiras não resolveram coisa alguma. Se a Grécia aceitar as condições dos parceiros europeus, abre-se caminho para a solução do problema dos resgatados e para estabilizar Espanha e Itália.
Neste contexto, Portugal surge como “o bom aluno”. É interessante ver que a classificação vinda de fora é interpretada no discurso político português como anátema. Os nossos credores, os que pagam as contas (estamos sob resgate, dependentes do dinheiro que nos empresta a troika) acham que o governo português está a fazer tudo bem, mas isso colide com a tese dominante dos analistas de que temos de arrepiar caminho e explicar aos credores que não pagamos.
Entre os problemas estruturais mais importantes do país está o duplo défice: o externo (balança de pagamentos) e público (orçamental). O défice externo está a reduzir-se a valores mínimos históricos, mas todo o comentário sobre isso consegue ser negativo. Para a troika, este é obviamente um bom indicador.
No nosso esquizofrénico meio intelectual, a redução do défice externo é uma má notícia. Ao mesmo tempo, por todo o lado se ouve falar da derrapagem das contas públicas deste ano (São os mesmos que nunca se preocuparam com os défices do anterior governo e que defendem que não haja cortes em nenhuma despesa pública concreta). E todos omitem o factor decisivo: o ajustamento das contas tem metas inscritas no programa da troika, mas o programa não é só sobre essas metas. O ajustamento é acima de tudo a criação de uma tendência sustentável.
Em euros, o défice orçamental português chegou a rondar os 17,5 mil milhões em 2008; no ano seguinte, desceu para quase 17 mil milhões. Entre 2009 e 2010, o ajustamento português foi de 0,4% do PIB. O défice público, em 2010, atingiu 9,8%. O valor era insustentável, não estava a baixar e, por isso, as taxas de juro portuguesas subiram acima do que podia ser suportado, forçando o resgate.
Quando chegou ao poder, este governo não perdeu tempo a tomar medidas difíceis, mas só governou meio ano em 2011, tendo herdado uma derrapagem nas contas. No ano passado, o objectivo do défice era de 10 mil milhões de euros, mas o valor vinha de 16 mil milhões. Ou seja, era pedido um ajustamento de 6 mil milhões, quando no ano anterior a redução fora inferior a mil milhões de euros. Mas foi o PS que negociou estas metas irrealizáveis.
O governo de Passos Coelho recorreu a receitas extraordinárias e, se as retirarmos da equação, o défice orçamental de 2011 foi de 8%. Em resumo, o ajustamento de 2011 foi, mesmo assim, de quase 2 pontos percentuais de PIB, rondando 3 mil milhões de euros. No mesmo período, a Grécia conseguiu um ajustamento de 1,2 pontos percentuais; a Espanha, de apenas 0,8; e a Itália, 0,7 pontos percentuais.
O ajustamento português foi o mais importante, como aliás deverá ser este ano. A meta de 2012 era de 4,5% de défice orçamental (7,5 mil milhões de euros) mas o país parte de 8% (13 mil milhões de euros). Se, como tudo indica, o défice final ficar em 5,5%, a rondar os 9 mil milhões de euros, o nosso ajustamento terá atingido 4 mil milhões de euros (2,5 pontos percentuais de PIB, mais do que nos era pedido, que era de 6,3 para 4,5).
Claro que os valores finais podem não ser estes, não sabemos ainda. O ano não acabou, as contas podem ser melhores ou podem ainda piorar. O ponto é o seguinte: ninguém está a fazer o exercício de ver a redução real do défice, quer em percentagem, quer em euros. Ninguém compara o nosso ritmo de ajustamento com o dos outros países em dificuldades. E, no entanto, estes são os números que interessam à troika. Os valores mostram que os portugueses estão a fazer um sacrifício muito doloroso e sério. Não sendo estúpidas, as elites da esquerda tentam omitir estes factos: sabem que já não lhes resta muito tempo para conseguirem travar o processo de consolidação das contas públicas, antes que fique nítido o seu êxito.