O mistério
Por estes dias em que até mesmo quem apoiou convictamente o Governo hesita, critica, pondera outros caminhos, convém perceber o que diz aquela oposição que, para além do folclore fracturante e da retórica da justiça social, afirma não rejeitar a economia de mercado nem o direito de propriedade, incluindo dos meios de produção - em suma, o capitalismo.
Anda para aí um programa orçamental do BE para "salvar a economia". Fui ver e fiquei pelo resumo - a agenda é de tal modo transparente que, para ler o desenvolvimento com atenção, se faria mister ter um espírito de sacrifício que não me assiste.
Diz a papeleta o seguinte:
1) A recusa do aumento do irs no oe 2013, demonstrando que o défice pode ser corrigido com um conjunto de reformas fiscais no irs (englobamento de todos os rendimentos), no imi (progressividade com quatro escalões e fim de isenções), no irc (progressividade por via de 3 novos escalões), um imposto sobre grandes fortunas (igf), a reposição do imposto sobre heranças e ainda uma taxa marginal sobre transações financeiras.
O IRS já é progressivo, e com todas as alcavalas a taxa máxima atingirá 54,5%. Já em 2009, 6% dos agregados (com rendimentos acima de 50.000 Euros) representavam 63% do total da receita cobrada. E os felizardos que pagaram 42% (rendimentos acima de 64,6 mil Euros) representaram 21,4%. Com as cordoveias do pescoço inchadas de indignação, a malta do BE costuma falsear a percepção deste facto, fazendo passar a ideia que os "ricos" não pagam a crise. Há, é claro, os muito ricos (mais de um milhão de rendimento bruto por ano). São 0,003% das famílias, uma superfície sobre a qual, para obter uma receita significativa, é melhor ir para o confisco puro e simples, que infelizmente só funcionará uma vez. O englobamento, pó de perlimpimpim do BE, produziria uma receita de 400 milhões de Euros, a sair dos bolsos sem fundo dos ex-ricos dos escalões máximos - um reforço da progressividade, com outro nome.
A progressividade do imposto sobre o rendimento, que tem dignidade constitucional, é em si discutível. Mas não curo dessa batidíssima discussão agora. O esbulho dos ricos, transformando-os manu militari em remediados, parte do princípio que tudo ficaria igual: continuariam a ganhar o mesmo, e deixavam-se sangrar trabalhando, investindo, e não reagindo. Santa ingenuidade!
O imposto sobre grandes fortunas é um esbulho dirigido a quem tenha imóveis ou móveis de luxo e traduz-se nesta mensagem: ponham os móveis ao fresco e os imóveis no mercado. Se tiverem bens mas não rendimentos ao mesmo nível, a gente penhora e põe as mobílias nos gabinetes dos dirigentes da Administração, os candelabros nas estações de metro (há precedentes históricos, que deram excelentes resultados) e associações de okupas e comissões de moradores nas mansões. Já as antiguidades têm mais é que estar em museus, que o povo precisa de se cultivar vendo como viviam os fascistas e exploradores.
O IMI, um imposto que se destina a sustentar as autarquias, a sua prodigiosa malbaratação de fundos, a cacicagem local, os quadros pletóricos de pessoal, o endividamento crónico, as megalomanias e modas dos bairrismos tolos, o desenvolvimento a golpes de pavilhões multi-usos, rotundas ornadas de estatuária modernaça, e vias rápidas para o motel ou as casas de putas do concelho vizinho - é a negação retroactiva da vontade dos mortos, para quem quis deixar imóveis a herdeiros, e sobre a poupança e o trabalho, para quem os comprou e conserva ou melhora.
O IRC deveria ver baixar a sua taxa permanentemente, para atrair o investimento, nacional e estrangeiro. E há boas razões para pensar que a receita não baixaria na proporção da redução percentual do imposto, mesmo que o investimento não viesse em tropel - a competitividade fiscal é uma boa e necessária ideia, mas não é suficiente.
O imposto sobre heranças é iníquo. Quem deixa alguma coisa a alguém, adquiriu-a por investimento, trabalho, diligência ou poupança, e já pagou os seus impostos. Desejar aos descendentes uma vida mais desafogada, e trabalhar para isso, é um impulso natural que o imposto contraria, incentivando a incúria, o desleixo e o consumo, e desincentivando a poupança e o investimento.
A taxa marginal sobre transacções financeiras assenta na necessidade do registo do movimento de capitais e pressupõe níveis iguais de actividade. Não se percebe a modéstia dos 0,3% - cinco por cento parecer-me-ia um número mais feliz. É preciso ver que para obter receita fiscal o que é preciso é imaginação. Gaspar enganou-se na previsão de receitas - o BE não é desses, está com certeza confiante e pede meças aos guarda-livros da Troika na manipulação de folhas Excel.
O programa quer, todo ele quer (e aqui chegado acho que nem me vou dar ao trabalho de ver o resto) emagrecer a galinha, no pressuposto de que continuará a pôr ovos.
Esta é a receita que o Governo tem, em parte, seguido, para o País pagar o que deve. Já o BE não se incomoda excessivamente com os estados de alma dos credores, e diz-lhes quanto vai pagar, quando, e a que preço. Estes devem confiar, porque para gerir a economia uma das qualificações mais úteis é a capacidade de gerir comícios, e redigir manifestos e proclamações.
Resolvido assim a contento o problema do défice e da dívida, falta combater a quebra do produto e o desemprego. Calma: há o investimento público, parece. Em os decisores sendo da verdadeira esquerda, nem há corrupção, nem o investimento deixará de ser fortemente reprodutivo, nem faltarão recursos.
Por que razão esta gente, que na sua maioria apenas produz perdigotos e opiniões, acredita que retirando a quem realmente produz para pôr na mão de burocratas, políticos e engenheiros de sociedades, gerará Progresso - é um mistério.