Seguro deve escutar González
A esquerda radical nunca perdoou o reformismo de Mário Soares. O fundador do PS descolou o partido da órbita comunista, integrando-o ainda antes do 25 de Abril como força autónoma da oposição à ditadura. Após a Revolução dos Cravos, Soares liderou o PS no combate ao extremismo esquerdista - e foi mil vezes atacado por isso. Enfrentou com sucesso as tentativas do PCP de hegemonizar a esquerda portuguesa, fez alinhar os socialistas com a social-democracia europeia, opôs-se aos militares radicais que após 1976 pretenderam manter a tutela sobre o poder civil, decretou políticas de contenção financeira quando esse era um imperativo patriótico destinado a evitar a bancarrota, encaminhou o País para a integração europeia e nunca hesitou em separar águas na defesa permanente da democracia representativa.
Este é o Soares que todos conhecemos. Já o Soares dos últimos anos, que parece querer transformar o PS numa espécie de partido irmão do Bloco de Esquerda, está irreconhecível. Porque desmente a todo o passo a sua própria biografia política - uma biografia que sempre se opôs ao "frentismo" de esquerda, ao aventureirismo extremista e a todas as tentativas de cortar o passo à democracia representativa, nomeadamente através da diminuição do papel do Parlamento no conjunto das instituições políticas portuguesas.
O Soares de 2012 diz coisas semelhantes às que o PCP disse dele quando foi Governo, entre 1976 e 1978, primeiro, e de 1983 a 1985, depois - dois mandatos que decorreram sob o signo da crise financeira e da intervenção de emergência do FMI para sanear as contas nacionais. Também os comunistas disseram então que Soares queria "destruir a democracia". Também os comunistas se apressaram a passar certidões de óbito aos governos que liderou. Também os frentistas de esquerda chegaram a propor Executivos "de iniciativa presidencial" sem o recurso a eleições, como mandam as boas regras democráticas. Também a esquerda radical lhe apontou por diversas vezes a porta da rua, para "mudar de política".
Bem fez António José Seguro, através do seu líder parlamentar, ao lembrar ao fundador do PS que os governos não caem por pressão das ruas ou de cartas abertas: a democracia tem regras próprias que devem ser respeitadas. Era isso, aliás, que o Soares das décadas de 70, 80 e 90 defendia - por vezes contra fortíssima pressão partidária e mediática. É isso que, estranhamente, o Soares de 2012 parece ter deixado de defender.
Tudo isto sucede quando outra figura de referência do socialismo europeu, Felipe González, recomenda aos socialistas espanhóis um percurso inverso ao que Soares hoje defende: em vez de um partido a caminhar cada vez mais para a esquerda, o homem que há 30 anos levou o PSOE a um triunfo esmagador nas urnas aconselha os seus pares a retomar a "vocação de maioria" para recuperar o centro.
"O PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol] perdeu a vocação de maioria e tem de recuperá-la. Tem de conseguir isto encarando a sociedade e auscultando as suas necessidades. Não de forma sectária, mas com espírito de consenso." Palavras de González que Seguro deve escutar com atenção. Por estarem em linha com as teses do Mário Soares que venceu eleições em 1976, 1983, 1986 e 1991. Não com o Soares que saiu derrotado das presidenciais de 2006 e desde então parece caminhar em colisão com a rota que sempre traçou.
Imagem: Felipe González e Mário Soares (2010). Um quer hoje os socialistas a virar ao centro, outro defende um PS ainda mais à esquerda
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