Das cigarras, das formigas e do cacau com vaca
Não me tem sido possível a audição directa dos sucessivos pronunciamentos discursivos do primeiro-ministro e da oposição, sobre a caça aos desviacionismos, as denúncias da austeridade e as promessas de salvação pública. Apenas confirmo que entrámos naquela zona da estratégia dita ponto de não regresso. Isto é, já estamos além da encruzilhada e debaixo do potencial fogo mortífero.
Até nem percebi essa do leite achocolatado, em vez das latas de coca com cola. Deve ser uma espécie de proteccionismo ao cacau com vaca, encartonado.
Sim! O voto é a arma do povo. Do proletariado e da classe média. Mesmo que Unamuno nos tenha classificado como povo de suicidas. Era noutros tempos. Agora, apenas podemos notar que tanto votámos em Sócrates, como em Cavaco e na presente situação. O povo tem os impostos que merece. Gosta de música celestial.
O "mileurismo" castelhano, que aqui se traduz por "quinhentinhos", apenas o invoco para repararmos como 1 000 euros é o limiar com que querem separar os pobres dos remediadinhos, embora todos paguem. Os dos costume, os que não pagam, lá continuam a explorar a desgraça alheia, não reparando que a desgraça é nossa. Odeio que assim instrumentalizem a luta de classes. Somos todos novos pobres, e de espírito, nesta encenação politiqueira da questão social.
Cada um dos simples homens comuns que não instrumentalizaram com favores o sistema clientelar da mesa do orçamento, com os seus alegres convivas, da anterior oposição e da anterior situação, sabe, de experiência sofrida, como era o tradicional desviacionismo que nos endividou. Eu também sei, naquilo que podia observar. E continuo a saber que só mudou a aparência, para que tudo continue na mesma. A terapia de choque não devia ser externa. Devia implicar uma mudança de atitude. O Estado não são eles, somos nós, mas ainda o não somos.
Continuam as mesmas grafonolas dos intermediadores de repartição, os que apenas mudaram o disco, cantarolando agora que a culpa é de outros, que não eles. Infelizmente, o inferno somos nós. Que continuamos, para eles, a ser os outros. Quando é que as formigas se libertam destas más cigarras?
Tenho alguma lucidez em ser ingénuo. Gosto pessoalmente do Pedro. Gosto pessoalmente do Tó Zé. Simpatizo com o Jerónimo. Considero o Paulo genial. E reconheço as capacidades do Francisco. De nada me vale. Nem a de poder ter tido razão antes do tempo. Não posso transformar a farpa atempada em dedução fiscal. Só alivia a força da razão, num tempo que continua a ser pautado pela razão da força.