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Forte Apache

A análise clínica

José Meireles Graça, 03.04.13

Tenho uma gaveta para onde despejo, desde há mais de vinte anos, extensa correspondência com repartições públicas, companhias majestáticas (aquelas, normalmente monopolistas ou oligopolistas, que se relacionam com os clientes sob contratos de adesão), bancos, companhias de seguros e, recentemente, entidades supervisoras, como o Instituto de Seguros de Portugal ou a Anacom.

 

A taxa de sucesso das reclamações foi sempre, e continua a ser, ridícula. Não é que não tenha havido algumas mudanças: hoje é raro a empresa, instituição ou organismo abster-se de responder. Mas onde dantes estava o silêncio agora está com frequência a língua de pau: um funcionário falsamente atento dá aulas sobre a legislação ou regulamento pertinente, que não raro interpreta capciosamente, finge não entender a natureza do problema, e de forma geral reflecte o ponto de vista dos serviços, que quase sempre se distinguem, precisamente, por não o serem. E há graus de abuso: quanto mais distante, poderosa ou independente a organização, pior. Num ranking de feios, porcos e maus, baseado na minha experiência de vida, poria à cabeça os bancos e seguradoras; e na categoria à parte do ridículo, senão do grotesco, colocaria as supervisoras.

 

Isto é assim, creio, por razões culturais. um costume de impunidade no serviço público: o funcionário apenas pode ser castigado por desagradar ao chefe ou por extinção ou remodelação do serviço. Na relação com o cidadão funciona o espírito de corpo - os funcionários são o nós e os cidadãos o eles. E há a tradição do respeitinho, que o poder político tem reforçado quando diminui, como sucede de forma exemplar no âmbito fiscal, as garantias de defesa dos cidadãos, expondo-os a inimputáveis e abusadores.

 

Teimosamente, continuo a reclamar - faz bem ao fígado e sempre é uma espécie de serviço cívico.

 

Em resumo, sou o que os Americanos designam, com a elegância que lhes é própria, como a pain in the ass; e, entre nós, um puto dum chato.

 

E não me parece que a idade tenha exercido qualquer espécie de efeito balsâmico: agora implico até com insignificâncias, como a que narro (sim sim, vi a entrevista de Sócrates) a seguir:

 

Num laboratório de análises, a simpática funcionária que me atendeu dirigia-se-me reiteradamente como "senhor José Maria". Já no fim da conversa, perguntei-lhe se não se importava que lhe fizesse um reparo. Ela disse, um tanto contrafeita, que não, pelo que lhe expliquei que, convencionalmente, me deveria tratar por "senhor Graça", o "José Maria" ficando reservado para a circunstância de virmos a ser amigos, mas dessa feita sem "senhor". A menina abriu muito os olhos, que são os da geração mais bem formada de sempre, e tomou nota.

 

Hoje recebi o seguinte e-mail:

 

Bom dia, conforme pedido segue os resultados do senhor José Maria.

Grata pela atenção.


E respondi:

 

Relembro que, em se tratando de cavalheiros em relação aos quais se usa a designação "Senhor", o que se deve seguir será não o nome próprio mas sim o título académico, se existir licenciatura, e o nome de família. O nome próprio é reservado para tratamento que supõe alguma familiaridade, amizade ou conhecimento próximo.

 

NÃO sou "senhor José Maria", mas sim "senhor Graça" e considero um abuso dirigirem-se-me nesses termos.

 

É claro que as fórmulas de trato são meramente convencionais, mas não vejo com bons olhos substituir uma fórmula baseada na tradição por outra baseada na ignorância.

 

Cordiais cumprimentos.

 

José Meireles Graça.

 

A menina retorquiu, passada uma meia-hora:

 

Bom dia.

 

Peço desculpa, mas não foi intenção minha tratar mal o Senhor Graça. Mas sim enviar o mais rápido possível as analises uma vez que me foi pedido.

Mais uma vez desculpa.

 

Grata pela atenção.

 

Tenho que a informar que não tenho nenhum complexo de superioridade, nem falta de consideração por ela ou pelo trabalho que desempenha. E que, pela resposta, ficou credora da minha estima: não é costume.

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