Sobre a chateza do discurso, o recurso a chavões, o economês, o politiquês, pouco digo - cada um dá o que pode, e o que Cavaco pode ajudou, como o próprio recorda com justiça, a ganhar recorrentemente eleições. Os "desafios do futuro", a "responsabilidade histórica", as "linhas de rumo" e toda a parafernália de frases pedantes e estafadas, sempre serviram para Cavaco fazer passar a imagem da fluência com que a Providência não o dotou, do voluntarismo que não tem, da coragem que lhe falta, da competência técnica que, num político, é acessória, e da profundidade de pensamento que, nele, é um transparente véu sobre a mediania.
Agora, como estratega, Cavaco é brilhante: nunca aceitou um debate que pudesse evitar e, nunca, num debate, se afastou da cassette da resposta estudada para a pergunta óbvia e o argumento previsível; nunca, como decisor, se afastou do mainstream do pensamento económico, em particular na relação com a CEE e depois com a UE e o Euro; nunca, como magistrado ("o mais alto magistrado da Nação", aposto que terá dito, é o género de coisa que gosta de dizer) foi claro para o cidadão, excepto na generalidade dos sentimentos e das preocupações pias que quase ninguém contesta; e sempre teve o cuidado de, suspeitando dos riscos da política A ou B, evidenciá-los, para poder dizer no futuro que alertou, avisou e preveniu.
Cavaco ajudou a derrotar um Sócrates moribundo, depois de ter andado de braço dado com ele quando Sócrates era um menino de ouro, benquisto por uma maioria por cima da qual espargiu o dinheiro que pediu emprestado, as aldrabices várias em que foi mestre e as promessas e iniciativas loucas com que engrupiu o eleitorado e os crentes da sua seita.
Cavaco, diga o que disser, foi cúmplice: não há dois Sócrates, o de antes e o de depois da crise, há apenas um, e esse não se recomenda. Na melhor das hipóteses, deixou-se iludir - como já antes lhe acontecera com demasiados outros.
Estratega brilhante, disse acima. Tão brilhante, ou eu tão medíocre, que o propósito do exercício me escapa: i) É um testemunho histórico? Mas Cavaco tem anos de actividade política pela frente, e quase nunca o futuro foi tão incerto - o tempo de publicar memórias seria mais à frente; ii) É um ajuste de contas? Mas quais contas, se as que Sócrates terá que prestar são porventura de ordem judicial, que as políticas já estão feitas?; iii) É um apoio ao Governo? Mas como, se por estes dias o Presidente tem feito bastas críticas, no seu estilo bate-e-foge?
Não percebo. Não devo ser o único, bora lá todos ler o Abrupto, logo que saia a leitura das entranhas - as tendas querem-se com quem as entenda.