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Forte Apache

A importância de ter memória

Pedro Correia, 19.09.12

Tenho felizmente boa memória. Lembro-me portanto da revisão constitucional de 1982 que na prática retirou o semipresidencialismo da nossa lei fundamental. Foi uma alteração ad hominem, que transformou uma ocasional maioria parlamentar em arma de arremesso contra o Presidente Ramalho Eanes. Recordo-me também que o principal mentor desta iniciativa foi o então líder do Partido Socialista, Mário Soares. Como retaliação contra o facto de Eanes ter demitido o seu Executivo e dado posse a três sucessivos governos de iniciativa presidencial.

A partir da revisão de 1982, o Presidente deixou de poder exonerar discricionariamente o Governo e este passou a ser politicamente responsável apenas perante a Assembleia da República. Foi a maior alteração introduzida à letra e ao espírito da Constituição de 1976 por decisão conjunta do PS de Soares e do PSD, na altura liderado por Francisco Pinto Balsemão. Ambos invocavam, para o efeito, a necessidade de parlamentarização do sistema político português. Não deixa, por isso, de ser irónico que Soares venha agora fazer um apelo público ao Presidente da República para mudar o Governo sem recurso a eleições e formar um novo Executivo.

Exige hoje precisamente o que Eanes fez com ele em 1978. Esquecendo-se já da forma como respondeu a Eanes ao alterar as regras constitucionais, reduzindo drasticamente os poderes do Chefe do Estado. Razão tinha Marx: a História costuma repetir-se, mas como farsa.

 

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O desconto

José Meireles Graça, 05.09.12

Mário Soares tem uma longa história de consistência na defesa do PS, no interesse do qual já defendeu nacionalizações e privatizações, o socialismo à luz do dia e na gaveta, o marxismo como instrumento de análise da realidade social e o anti-marxismo nos factos e nas decisões políticas, a independência no exercício da Presidência da Republica e a utilização daquela magistratura como instrumento de guerrilha ao Governo - tudo, e ainda o contrário de tudo, desde que o PS ganhe.

 

Está bem, a gente dá um desconto e automaticamente interpreta o que ele diz a esta luz.

 

Por baixo desta forma de coerência, digamos assim, partidária, há porém uma outra: e essa é a da defesa da Democracia e da Europa Federal, ideais ao serviço dos quais prestou relevantes serviços, no primeiro caso em 75 e no segundo desde antes da adesão à CEE.

 

Sucede que ninguém discute a Democracia há muito tempo: a maioria da população não conheceu outro regime, não havendo nenhuma corrente organizada que a ponha em causa (salvo o PCP e ocasionalmente o BE, mas sem deixarem de lhe aceitar as regras). E da Europa Federal não se sabe o que pensa o eleitorado, porque nunca foi perguntado.

 

Mas não é um passo arriscado imaginar que o eleitorado estará  receptivo a qualquer doutrina - qualquer - que lhe permita acreditar que a austeridade vai acabar e o País recomeçar a crescer; e só não compra o discurso da extrema-esquerda porque existe a válvula da emigração e a ambição difusa de ser a Suécia, ou a Dinamarca, ou uma pequena França ibérica - mas não uma Cuba temperada. Nem compra, para já, o discurso do PS porque a memória está fresca da rebaldaria despesista de Sócrates.

 

A Europa Federal poderia ser engolida, e creio que seria sem hesitações, se fosse a garantia de não haver troikas, nem desemprego galopante, nem falências, o que evidentemente não é nem será. Nada porém que aflija o genuíno federalista que Soares é.

 

Quando porém desaparecesse a aflição, outra geração quereria fazer marcha-atrás - os engenheiros de pátrias nunca, a prazo, têm razão.

 

E é por isso que estas declarações de Soares ("faz apelo patriótico contra privatizações") são chocantes. Apelos patrióticos?! Na boca de Soares?!

 

Não há desconto que chegue.

Autocrítica, doze meses depois

Pedro Correia, 08.05.12

Expliquem-me, por favor. O Mário Soares que, fez agora um ano, teve uma "discussão gravíssima" com José Sócrates ao ponto de levar o ex-primeiro-ministro a ceder "à evidência" de que Portugal necessitava de urgente ajuda externa será o mesmo que hoje instiga o PS a "romper com a troika" porque "entrou aqui como se Portugal fosse um protectorado"?

Razão tinha Jorge Coelho naquela frase que a SIC Notícias gosta tanto de exibir: "Há muita falta de memória na política e nos políticos".

25 de Abril sempre

José Meireles Graça, 24.04.12

Excepto se aproveitados para uma ponte, os feriados civis provocam-me um indizível tédio - são ainda mais chatos que o Domingo. E dos religiosos gosto apenas por respeito difuso à tradição que a comunidade a que pertenço santificou há séculos, e ainda, em havendo crianças por perto, porque elas neles vêem encanto.

Dos discursos é melhor nem falar: o dia das Comunidades costuma ser um longo desfiar de inanidades, e nos feriados das mudanças de regime aproveita-se para "mensagens" e "recados", que diligentemente o Chefe de Estado, os representantes dos Partidos e um ou outro Senador propinam com generosidade.

A comunicação social excita-se com umas e outros, uma semana após o rumor esmorece - para o ano há mais.

De tanto discurso e tanta intenção benévola ou venenosa não resta, que me ocorra, uma linha memorável.

 

O 25 de Abril, porém, é diferente porque está ainda viva muita gente que o viveu. E isso faz com que não haja, na realidade, um único mas vários 25 de Abris. Lembro alguns: o dos militares que o fizeram, ou a ele aderiram, com maior ou menor risco pessoal; o daqueles que foram presos, exilados, prejudicados nas suas carreiras profissionais ou de alguma forma ofendidos pelo regime deposto; o dos que nutriam silenciosa antipatia pela Velha Senhora, mas, no interesse próprio e no das suas famílias, se abstiveram de a manifestar publicamente; o dos que o viveram como uma festa, mas eram demasiado novos para ter sentido a opressão sufocante do Salazarismo; e os outros, isto é, a maioria que tratava da sua vidinha e à política dizia nada, como a política nada lhes dizia, e que descobriu que, se berrasse o suficiente, se faria ouvir.

O primeiro grupo não era unívoco: irmanados na aversão a um regime que os condenava a uma guerra sem fim à vista, tinham que inventar à pressa uma doutrina que desse cobertura ideológica ao propósito do golpe de Estado, cujo motivo principal (carreiras sem futuro, exílio para longínquos teatros de guerra de guerrilha, intuição de que os ventos da História não sopravam para onde os responsáveis diziam que eles sopravam) não era fundamento bastante para um regime novo.

Daí o manicómio em autogestão a que se chamou o PREC: os militares não escolheram todos, no pronto-a-vestir ideológico, o mesmo figurino, e os pais da malta do 5Dias pescaram abundantemente naquelas águas revoltas, a ver se pariam uma democracia autêntica, com Trotzkys, Ches, Fideis e outros barbudos. Cunhal, a Raposa Branca, à espreita, que seria ele o herdeiro da bagunça e em devido tempo limparia o sebo aos desvios de esquerda, logo a seguir a tê-lo limpo à direita fascista e reaccionária.

 

O resto é conhecido: ganhou a facção "moderada", Soares e outros cavalgaram a imensa mole da população que não queria comunistadas, e Eanes ajudou a recolher os militares aos quartéis.

Os militares ganhadores, que ficaram pela maior parte na Associação 25 de Abril, e os civis que lançaram as bases do regime que temos, ficaram donos dele, e por conseguinte da comemoração deles, à qual ficaram românticamente associados os comunistas de todos os bordos porque foi linda a festa, pá, e ainda temos a Constituição.

Depois escolheram o Euro e a UE, enquanto vinha a globalização. E os ganhadores do regime não perceberam nada disso, e continuaram a festa como se não houvesse amanhã. Mas havia - é hoje.

E por isso não querem celebrar o 25 de Abril oficial. E têm razão - o 25 de Abril deles acabou.

Oxalá o outro, onde cabem todos e que não tem donos, subsista. 

O tempo e a memória

José Meireles Graça, 13.03.12

Mário Soares terá, daqui a uns cem anos, direito a uma nota de rodapé, uma página ou um capítulo, consoante a espessura e o número de volumes da História de Portugal. Esta condição não partilha no mesmo plano com ninguém vivo, e por assim se intuir é que é lido com atenção, mesmo por quem não tem ilusões sobre as suas pesadas responsabilidades na situação de província distante e miserável do Império, em que nos encontramos.

Porque dos três Dês que encarnou, mais completamente que qualquer outro político, um foi um monumento de ignomínia fujona (é verdade que com muito maiores culpas de oficiais comunistas e de um povo farto da guerra colonial), outro está em regressão porque foi feito com crédito, e até mesmo a democracia, para imaginar que está sólida e não é reversível, requer alguma dose de fé no futuro.

A história de Mário Soares é a história de um falhanço parcial, e pode vir a ser a de um falhanço total; e todas as decisões que criaram o pano de fundo do estado a que chegamos (aposta acéfala e total na UE e no Euro, aprofundamento do Estado Social sem economia para o suportar, atribuição ao Estado de um papel central como motor do desenvolvimento) contaram com a bênção e o entusiasmo militante do hoje velho Senador.

Infelizmente, dar incessantemente com a mesma cabeça na mesma parede faz parte da condição humana - é pouco provável que Estaline, Hitler ou Mao, três dos maiores criminosos sociais do séc. XX, se tivessem arrependido, ainda que no último minuto. Com perdão da comparação forçada, que o nosso Mário Soares é genuinamente um Democrata tolerante e civilizado.

Tolerante, civilizado e incapaz de aprender: Portugal, depois dos Cravos, pediu por duas vezes a intervenção do FMI; e de ambas se reequilibrou, e em ambas teve recaídas, a segunda das quais não foi reconhecida como tal porque entretanto se tinha arranjado um analgésico para não curar a doença, que entretanto se agravou.

À cura Mário Soares chama neoliberalismo. E como para o crescimento, anémico embora, da última década, se encontrou quem emprestasse, e isso não é mais possível, ou reconhecia que o caminho não podia ser o seguido até ali, ou inventava um caminho novo, pavimentado a leite e mel.

O caminho parece novo mas é velhíssimo: "...sem um Governo europeu, financeiro e económico (e mais tarde político), não há austeridade que, por si só, valha à União, à beira do abismo".

Eu traduzo: os outros que paguem - entrega-se a nacionalidade, como já se deu de penhor a independência.

Grande, enorme Mário Soares. Mas, como dizia Eça, Sancho Pança - era maior.

Volta à Europa

José Meireles Graça, 17.02.12

Um grupo de ciclistas de várias gerações, encabeçado por um antigo camisola-amarela, vem propôr-nos a solidariedade com o povo Grego porque "se sabe que a crise não é só grega mas europeia".


Também sou solidário com o povo Grego. Mas estes desportistas sabem coisas que ignoro. Porque a crise grega é grega, a nossa é nossa, e as da Finlândia ou Holanda seriam, respectivamente, finlandesa ou holandesa - se existissem.


Mas não existem. E nós, os Finlandeses, os Holandeses e os Gregos, todos somos Europeus. Logo, a crise grega só pode ser descrita como europeia porque estes senhores promoveram a ideia de que a Europa é uma bicicleta que não pode parar, mesmo quando à pedaleira faltam dentes, a cremalheira encravou e o pinhão está podre.


São, caracteristicamente, socialistas: o problema que criaram há-de ser resolvido pelos outros e a realidade não tem razão - a engenharia social e de pátrias sim.


Mas não, o problema não vai ser resolvido pelos outros, será quando muito adiado. E os apelos de velhas e novas glórias do ciclismo doméstico estão desacreditados.


Querem um atleta moderno com as ideias no lugar? Está aqui, mas não é ciclista.