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Forte Apache

A perigosa retórica antipartidos

Pedro Correia, 17.07.13

 

No seu habitual espaço de comentário da TVI 24, Manuela Ferreira Leite louvou o «belíssimo discurso» ao País do Presidente da República. Como seria de esperar. Chegou a dizer o seguinte, que aqui registo para memória futura: «Se a atitude do Presidente da República provocasse um terramoto interno nos partidos não seria mau. Se há coisa sobre a qual a opinião pública não tem uma boa opinião é relativamente aos partidos», havendo portanto que «metê-los na ordem».

Anotei a perfeita sintonia destas palavras com declarações quase simultâneas de Rui Rio, também em claro elogio ao inquilino de Belém. «Não sei se os partidos se conseguem entender. Mas foi-lhes dada pelo Presidente da República uma oportunidade única de se poderem credibilizar perante a opinião pública», declarara horas antes o presidente da Câmara Municipal do Porto.

Começa a fazer caminho, entre as personalidades que têm como principal referência política o actual Chefe do Estado, a ideia de que a democracia portuguesa está degenerada por culpa dos partidos.

É um caminho perigoso e que contradiz todo o património histórico do PSD desde os tempos do seu fundador, Francisco Sá Carneiro.

Vale a pena reler com atenção a última entrevista concedida por Sá Carneiro, publicada no próprio dia da sua trágica morte, a 4 de Dezembro de 1980, na revista espanhola Cambio 16. «Eanes, com este projecto impossível de acordo entre os socialistas e os sociais democratas, é um factor de instabilidade», criticava o malogrado fundador do PSD, visando o então Presidente da República, a quem acusava sem rodeios: «Eanes é um homem que provoca crises nos partidos porque tem uma visão da política que é a do poder pessoal.»

A história repete-se, com mais frequência do que muitos imaginam. Não deixa de ser irónico que Cavaco - ex-ministro das Finanças de Sá Carneiro - sirva hoje de bandeira à retórica antipartidos emanada de alguns dos seus apoiantes mais notórios.

 

Imagem: Cavaco Silva e Sá Carneiro em 1980

Pausa à mesa do póquer

Pedro Correia, 16.07.13

 

Imaginem uma mesa onde se joga póquer. À volta da mesa, quatro cadeiras. Nessas cadeiras estão sentados quatro homens: Aníbal, António, Paulo e Pedro. Cada qual fazendo bluff, temendo as cartas que os restantes possam lançar.

A política portuguesa, por estes dias, transformou-se nisto. Há um país inseguro, que sustém a respiração, suspenso destas cartadas. Um país sob intervenção externa, que há mais de dois anos perdeu a soberania financeira, aguarda que naquela mesa termine o jogo. Sem a mais remota esperança que daqui resulte uma solução mais sólida e mais estável.

 

Passaram apenas duas semanas desde que foi tornada pública a demissão de Vítor Gaspar, acompanhada de uma carta que constitui um notável contributo para a antologia do humor negro na política portuguesa. "Os riscos e desafios do próximo tempo são enormes. Exigem a coesão do Governo. É minha firme convicção que a minha saída contribuirá para reforçar a sua liderança e a coesão da equipa governativa", dizia o ex-titular das finanças nessa missiva supostamente dirigida ao primeiro-ministro mas tendo afinal por destinatários dez milhões de portugueses, inaugurando o estilo "carta aberta" no exercício da governação.

Quinze dias depois, tudo parece ter regressado aos penosos dias do pântano - num teste quase desesperado à liderança e à coesão, palavras habitualmente invocadas na razão inversa da sua existência, como Gaspar bem sabia quando as colocou na sua carta que abriu oficialmente a saison de crises políticas.

Não admira, por isso, que um dos quatro opte por uma pausa no mais remoto e desabitado recanto do território português. Perfeita antítese da atribulada política portuguesa por estes dias, o plácido arquipélago das Selvagens. Com apenas quatro habitantes e banhado pelas águas mais limpas do mundo, como as classificou o oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau.

 

A Bolse treme, levando Lisboa ao terceiro pior desempenho do mundo? Os juros disparam? Há novos pedidos de demissão na equipa das finanças? Chovem acusações de que se pretende "institucionalizar o caos"? Nada que o som das cagarras não dissipe enquanto se contempla o vasto Atlântico que inspirou os navegadores das naus de Quinhentos.

Talvez elas nos tragam notícias do eclipsado Gaspar, o ex-ministro em quem o chefe do Governo costumava "confiar plenamente" em dias que parecem já muito distantes. Talvez elas contribuam para atenuar o choque das contínuas surpresas em que se transformou a montanha russa da política nacional. Talvez elas ajudem a revigorar o supremo árbitro do sistema, mais eloquente nos longos períodos de silêncio do que no esporádico uso da palavra.

Ou talvez não.

 

Variações sobre um tema de Aníbal - opus 666 em dó menor

José Meireles Graça, 11.07.13

Quem tiver vivido a presidência de Jorge Sampaio lembrar-se-á vagamente que era um tipo que falava bem Inglês, recomendava serenidade a todos os propósitos, mesmo quando não havia razão para nervos, e declarava torrencialmente coisas que, quando se percebiam, eram ou banalidades da esquerda soft ou irrelevâncias. Ainda hoje, se inquirido, Jorge conserva a capacidade de falar muito e não dizer nada, que Deus o conserve por muitos anos e bons. Um homem de Estado para leitores do Courier International e Tino de Rans, em suma.

 

Mas Sampaio deixou marca quando declarou para a posteridade que havia vida para além do défice, e mais ainda quando demitiu um governo com maioria parlamentar, oficialmente por ser liderado pelo ex-secretário de Estado dos Teatros, na realidade por as sondagens mostrarem que o PS tinha maioria. E deixou marca sobretudo porque criou um precedente, que tinha pernas para se constituir num costume constitucional: sempre que o Presidente for de uma maioria diferente da que apoia o Governo, e logo que a opinião pública simpatize com o cavalo ganhador da mesma seita que o Presidente, este demite.

 

Não há mal nenhum em ter costumes constitucionais: o regime e as pessoas adaptam-se e, se a coisa for por demais inconveniente, há as revisões periódicas da Constituição.

 

Isto julgava eu, porque a inversa seria que sempre que o Presidente fosse da mesma cor que a maioria, o Governo iria, mesmo que aos tropeços, até ao fim do mandato. Mas Cavaco veio baralhar os dados, com a criação de rajada de novas figuras: i) Os governos podem estar em plenitude de funções, mas a prazo - assim como quem diz um bocadinho grávidos da sua própria demissão; ii) Se os governos forem de coligação, o líder do mesmo partido que o Presidente tem de ser da simpatia deste, e não apenas dos militantes e dos eleitores comuns que o elegeram; iii) Pelo(s) lídere(s) do(s) partido(s) minoritário(s) coligado(s) o Presidente não pode nutrir um ódio profundo, senão fica autorizado implicitamente a fazer-lhe(s) a cama; iv) O interesse nacional não é matéria de opinião, pelo que os partidos coligados têm de ter a mesma opinião entre si, que tem de coincidir com a do Presidente; v) O Governo não pode encontrar os seus apoios apenas no Parlamento, tem também que ter encontros num hotel com a Oposição, sob a égide de um velho de barbas brancas da confiança do Presidente; vi) Se tudo falhar, o Presidente está autorizado a escrever um artigo com a fábula tradicional da boa e da má moeda, incluindo um anexo em que liste os numerosos momentos em que fez avisos de que as coisas, em não correndo bem, poderiam correr mal.

 

Mas estas inovações não terão a menor hipótese de vir a adquirir a dignidade de costumes constitucionais. De asneirol, a Constituição já tem avonde.

o busilis da solução de Cavaco Silva

Carlos Faria, 11.07.13

A utopia dá-nos muitas vezes força para caminhar, mas a maioria das vezes leva à desilusão quando sentimos que os pés se cansam para uma meta inalcançável.

Cavaco pôs em primeiro lugar a necessidade de ética política para salvar a Nação de uma forma sustentável a longo-prazo: em resumo, considerou imprescindível que os líderes dos partidos nacionais que dizem acreditar no sistema democrático ocidental, integrado na União Europeia e com as condicionantes do atual sistema de economia globalizada devem colocar os interesses fundamentais para a sobrevivência do futuro de Portugal acima dos interesses pessoais e de grupo que presidem e para acabarem com os jogos tendentes a meras vitórias passageiras de fação que prejudicam o que é essencial no País.

No campo dos princípios estou de acordo com a ideia de Cavaco Silva, o primeiro problema é se for impossível reunir um número mínimo de líderes nacionais de partidos chamados à ordem que coloquem de facto em primeiro lugar o interesse de Portugal.

O segundo é que na impossibilidade de resolução pela via dos líderes partidários, eu não vejo como os mesmos viabilizarão em seguida uma solução presidencial que coloque os interesses de Portugal acima dos das fações que eles defendem.

 

Hoje não há conquilhas

José Meireles Graça, 27.04.13

Nunca elegemos um liberal ou um conservador para Presidente da Republica. Aliás, que me lembre, nunca houve um candidato assumidamente liberal ou conservador e, se tivesse havido, teria sido copiosamente derrotado.

 

Ramalho Eanes foi eleito porque parecia, e possivelmente era, a melhor defesa contra a deriva comunista.

 

Mário Soares foi eleito porque ainda havia a memória fresca do seu panache de herói da resistência civil e se apresentava como o amigo de Mitterrand e da Europa rica, para a qual estendíamos olhos cúpidos.

 

Sampaio foi eleito por ter conseguido apresentar-se como o herdeiro natural de Soares, que foi popular por ter sido hábil e festivo num tempo em que a festa ainda era possível, e porque o então candidato Cavaco ainda tinha o peso da erosão recente de dez anos de PM.

 

E chegamos onde estamos, com a eleição de Cavaco em 2006. A Wikipédia diz dele que foi o "primeiro presidente da área ideológica da direita", afirmação que faz sorrir.

 

Cavaco sempre teve uma inabalável fé nos poderes demiúrgicos do Estado como principal agente económico e limitou-se a cortar o cabelo, quando no Governo, aos restos consideráveis da economia comunista, via privatizações, e a modernizar o País noutras áreas, como competia a um membro da CEE, por exemplo permitindo canais privados de televisão. De resto, colaborou entusiasticamente na amarração do País à Europa e ao Euro, manteve um respeitável sector público, criou um sistema de remunerações e carreiras dos funcionários públicos que veio a causar não pequenos problemas no futuro, e nunca hesitou em atrapalhar a vida das pequenas empresas, cuja realidade, aliás, completamente ignorou.

 

Pareceu muito e foi certamente alguma coisa. Mas nada, absolutamente nada, o qualifica como de direita, em qualquer das suas múltiplas declinações, excepto talvez em questões de costumes.

 

Isto significa que uma parte dos eleitores que levaram Cavaco a Belém, mesmo sem contar com as idiossincrasias da personagem, que despertam anticorpos, escolheu um mal menor.

 

Fui um desses. E hoje por hoje, quando um PS delirante, sem fazer mea-culpa por ser o partido da bancarrota; sem parar para pensar que só pode querer o derrube extemporâneo do Governo quem queira aumentar o preço do resgate - quer à viva força ocupar os lugares pouco invejáveis de um Governo aflito:

 

Concluo que não deitei o meu voto fora. Cavaco disse não, que não há eleições. Fez bem. Esperai por 2015, récua de socialistazinhos de uma figa. Se lá chegarmos.

Da entrevista de Cavaco Silva ao 'Expresso'

Pedro Correia, 06.01.13

«Faltam-me algumas qualidades atribuídas aos políticos. Não tenho vocação para a intriga, nem para a sedução de jornalistas; não tenho vocação para os jogos político-partidários - são coisas que me cansam. Há outros que são muito melhores do que eu nessa matéria.»

 

«[Vítor Gaspar] trabalhou comigo no Banco de Portugal e foi meu aluno em Finanças Públicas. Foi um aluno muito bom.»

O especialista

José Meireles Graça, 08.10.12

O doente tem uma doença gravíssima, mas sobre a natureza do mal as opiniões médicas dividem-se e o corpo não está a reagir bem aos tratamentos, na opinião de alguns por serem apenas sintomáticos: as chagas progridem, há agora escaras, nos membros inferiores um princípio de gangrena, na cabeça uma fractura exposta que se recusa a cicatrizar.

 

Diz o chefe da junta médica que a radiação produzirá ainda bastantes estragos, antes de a doença ser vencida e a recuperação se começar a notar.

 

Uma sumidade veio à cabeceira e, feitos os exames da praxe, declarou com voz cava: as escaras dão muito mau dormir, essas feridas estão a supurar, confirmo que o doente o está efectivamente, e com gravidade; ficam os meus ilustres colegas prevenidos, não se me venha dizer que não avisei.

 

Feita a declaração, retirou-se com dignidade, deixando os facultativos a entreolharem-se, cabisbaixos.

 

O Senhor Professor é um clínico muitíssimo distinto, nem era preciso mais esta concludente prova.