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Forte Apache

Die Euro-Gruppe

José Meireles Graça, 27.03.13

Quando, novinho ainda, tive que ir trabalhar por ter desaparecido quem me sustentava a vida de estudante medíocre e alegre, vivi por alguns anos num modesto quarto arrendado. Comia num tasco com pratos certos para cada dia da semana, passadio às vezes melhorado por a dona seleccionar discretamente para mim os melhores bocados - já lá está, a Zéfinha, que descanse em paz.

 

Aos fins-de-semana, porém, não havia cá proletariado: boa vida, garrafa de whisky na discoteca da moda, juventude dourada de oito em oito dias.

 

Esta prática exercia sobre a tesouraria alguma tensão. E uma ruptura ocasional foi colmatada com um empréstimo oportuno, solvido tempestivamente. Mas à primeira ruptura sucedeu uma segunda, resolvida do mesmo modo. Ao fim de algum tempo os empréstimos pagavam outros entretanto vencidos, e uma pool de pessoas amigas sustentava com naturalidade o circuito, certas de que em tempo oportuno seriam infalivelmente reembolsadas, assim como, um ou dois meses volvidos, encostariam novamente a barriga ao balcão.

 

A história, que terá durado uns quatro ou cinco anos, acabou bem: ninguém foi pago a destempo, ninguém deixou de receber, o carrossel finou-se com naturalidade por melhoria das condições de vida. E, enquanto durou, dei por mim a constatar que afinal não fazia nada de diferente do que faria se não tivesse havido uma primeira derrapagem: apenas andava algum tempo adiantado sobre a data da minha morte.

 

Nenhum dos beneméritos cobrou juros, e nisso - quase só nisso - o exemplo não se aproveita para transpor para o momentoso assunto dos défices das contas do Estado. Porque, na verdade, quem aceita com naturalidade que ter défices faz parte da ordem natural das coisas não vive por isso melhor, apenas esteve adiantado no consumo em algum momento. O chato é que, na vida dos países, há juros, grandessíssima maçada. E a melhoria de vida, que nos países se chama crescimento, tem que cobrir a dívida mais os juros.

 

Eu sei: a despesa pública não é igual ao que chamei consumo, tem uma componente de investimento. Mas, das duas uma: ou o investimento cabe dentro da receita e mesmo que corra mal não abana o barco; ou não cabe, e então, se correr mal, a burra está nas couves. É onde ela está, agora, e não apenas por causa do CCB, ou dos estádios do Euro, ou das PPPs e as mil outras fantasias de políticos empreendedores, interesseiros e corruptos, mas também porque, Deus lhes perdoe que eu não posso, acharam normal endividar o País até mesmo para consumir.

 

Quer dizer que, para sair do buraco, não nos basta mudar de vida, cortando nos fins-de-semana - isso bastaria, e nem seria preciso, se andássemos adiantados, como o meu pregresso eu, um ou dois meses. Mas nós andamos adiantados mais de 14 mezinhos, and counting. E suspeito que não há corte que chegue - mesmo que a dieta do tasco passasse a ser um molete e um copo de água.

 

É preciso crescer. A gente dos reflexos condicionados, que é quase toda, rosna, quando do meu lado do espectro político, o seu desprezo pelos crescimentistas, por a maioria das receitas que por aí andam serem iguais à desastrada que nos trouxe aqui. Para que me não digam que pareço uma daquelas velhinhas que dá bengaladas assim que vê uma mulher a fumar, abstenho-me de apontar outro caminho. Mas faz-me impressão que tenhamos sempre que, automaticamente, nos abrigarmos debaixo de um de dois guarda-chuvas: ou defender que, por pertencermos à UE, temos direito, para resolver o problema dos défices crónicos e da correlativa dívida pública crescente, a financiamentos para uma nova rodada de políticas públicas que - desta é que vai ser - nos garantirão o crescimento depois de amanhã; ou aceitamos como indiscutíveis todas as prescrições do BCE, do Eurogrupo, ou até, nos casos de seguidismo mais acéfalo, da Chanceler Merkel quando ela, a benefício do seu eleitorado, se dá ao trabalho de se pronunciar publicamente.

 

Entre nós, os vícios da chulice europeísta e da hipertrofia do Estado estão tão entranhados que o desmame ou se faz com alguma violência ou não se faz. E talvez valha a pena tentar alijar ao mar boa parte do nosso lastro, mesmo que em algum momento futuro se descubra que nem assim o barco flutua.

 

Mas o hábito do respeito (quem o tem) pelas imaginárias competências da eficiência germânica é traiçoeiro, como se verá:

 

Sucede que o facto de a banca cipriota ter sido arrastada pela dívida grega e outros investimentos imprudentes e estar insolvente; de os depósitos acima de 100.000 Euros terem origem ilícita (há por aí umas percentagens sábias, entre 40% e 90% do total dos depósitos); do sector bancário ser muito maior do que o PIB (entre 5 e oito vezes maior, dependendo de quem fala); e de a economia local, sem o assalto às contas e mesmo com ele, dificilmente reembolsar os apoios a receber: nada justifica o golpe vibrado na confiança no sistema bancário dos países aflitos.

 

Os tais fundos de origem duvidosa, como os que a tiverem legítima, rumarão a outras paragens - é possível que os fundos sejam santificados se estacionarem em bancos loiros de países frios. E, já agora, por toda a Europa do Sul a mensagem correu célere: tens pouco põe debaixo do colchão, tens muito vê lá se abres os olhos.

 

E cá está: a malta castigadora dos caloteiros aplaude o castigo. Então o contribuinte europeu ia ser chamado a subscrever o resgate quando foram os cipriotas, e só eles, que se meteram na alhada, e ainda por cima para salvar depósitos de mafiosos russos e gregos? O Eurogrupo decidiu, e decidiu muito bem, fica o aviso para banqueiros imprudentes, cidadãos ingénuos e trapaceiros sortidos.

 

A confiança, essa, levou um golpe mortal. Para quem pensa o que eu penso sobre a UE, talvez pudesse nisso encontrar alguma satisfação, se não houvesse mais vítimas do que uma mão cheia de plutocratas russos que foram assaltados.

 

Mas há. Os Cipriotas, desde logo. Todos os aflitos. E nós, por conseguinte.

Maria-vai-com-as-outras

José Meireles Graça, 19.03.13

Sempre suspeitei que o Euro era mal-nascido: a ideia de que uma moeda forte faz, de países fracos, países fortes, é uma patente tolice, que nenhum facto histórico confirma. A verdade é o oposto: os países com uma economia sólida tendem a ter uma moeda sólida. E dentro do mesmo país, quer seja federal como os EUA ou unitário como a Itália, há entre regiões assimetrias persistentes de rendimento que demonstram que a moeda, por si, não equaliza rendimentos nem taxas de crescimento.

 

Não descobri a pólvora, é claro: os pais do aborto sabiam, ou suspeitavam, disto mesmo. E por isso ousaram dar o passo como uma medida irreversível que ia na direcção que almejavam, a da Europa Federal que ainda hoje reclamam. Que se tenha honestamente acreditado que haveria entre os Estados Federados uma relação de igualdade, e que o caminho comum seria determinado por uma combinação razoável de um voto/um Estado, temperada por considerações de peso demográfico e económico, desafia o entendimento. Porque até mesmo uma federação de estados recém-nascidos, e por isso virgens de história, como os EUA, só se consolidou após uma dolorosa guerra que teve na origem, segundo a lenda, questões de direitos humanos e, segundo a realidade, questões de interesses económicos.

 

Porém, confesso com vergonha que dei o benefício da dúvida: não havia precedentes históricos e quem, como eu, entenda que não é possível compreender o presente, e menos ainda adivinhar o futuro, sem conhecer o passado, fica sem pé se não tiver referências históricas.

 

Mas, se não havia precedentes para o abandono voluntário, à escala quase continental, de nacionalidades mais do que consolidadas, havia e há para as consequências de conglomerações que façam tábua rasa do sentimento de pertença nacional, rivalidades tradicionais, equilíbrios, diferenças culturais, língua, história e tudo o mais que faz com que um Português, mais o seu tradicional complexo de inferioridade, nada tenha que ver com um Polaco, mais o seu tradicional medo do urso a Leste ou do Teutão a Oeste, com um Francês, mais o seu complexo de superioridade cultural e da grandeur de la France, ou sequer com um Espanhol, mais a sua sadia indiferença ao estrangeiro.

 

E por isso concluí, disse e escrevi de muitas maneiras diferentes que o Euro, se não fosse vítima do seu insucesso, sê-lo-ia do sucesso. Porque o sucesso, se fosse possível, nunca seria equânime.

 

Não que esta conversa auto-congratulatória interesse: já me significaram a propósito que até mesmo um relógio parado acerta duas vezes ao dia; e que sobre este assunto ainda não falaram definitivamente três doutores.

 

Mas agora falaram, ó se falaram, a propósito de uma pequena ilha a Sul da Turquia. E disseram que todos os esforços para salvar bancos por causa do risco sistémico foram inúteis. Porque, seja para punir os Cipriotas porque elegeram um Presidente comunista e se colocaram na bancarrota; seja porque os credores querem reembolsar-se depressinha e - não é verdade? - uma mão cheia de ilhéus não tem que ter nem opiniões nem veleidades; seja porque o Eurogrupo pretendia dar uma lição a plutocratas russos e a evasores fiscais gregos: não hesitaram em atirar às urtigas a já abalada confiança no sistema bancário dos países aflitos, pelo expediente simples de assaltar as contas dos respectivos cidadãos desprevenidos.

 

A garantia da intocabilidade dos depósitos até 100.000 Euros, até mesmo em caso de falência, foi pelo cano, e com ela quaisquer ideias, mesmo que remotas, de confiança e equidade, porque um assalto é um assalto, mesmo que alguns dos assaltados sejam por acaso ladrões.

 

A confiança no sistema bancário dos países de segunda morreu de morte matada. E, para os distraídos, esta mistura de quase inacreditável estupidez com ganância e sobranceria estilhaçou de vez qualquer ideia ingénua sobre solidariedades, destino comum e outras piedades, que nunca aliás existiram senão na cabeça de sonhadores e na boca de propagandistas e burocratas.

 

O edifício corroído já mostrava faz tempo as suas fendas. Agora, escancara uma enorme brecha.

 

Haveria que tomar providências para a fuga. Se bem conheço o meu País, não vai suceder. De tanto querer chegar ao pelotão da frente ficamos vidrados em quem lá está. E com o hábito dos pelotões: Maria-vai-com-as-outras ou não vai. 

O dia em que a União Europeia morreu

Fernando Moreira de Sá, 17.03.13

 

Quando li a notícia não acreditei. Por breves instantes pensei que era uma brincadeira do dia 1 de abril:

 

"Resgate no Chipre, aprovado no Eurogrupo, apresenta uma medida inédita, um imposto extraordinário sobre depósitos bancários. Para as contas de valor inferior a 100 mil euros, serão retirados 6,7%; para valor superior a 100 mil euros, serão retirados 9,9%; nas contas das empresas, 12,5%".

 

Estamos perante um crime, como ontem lembrava, num programa de televisão, um comentador. Sim, um verdadeiro crime punido pela lei criminal de qualquer país civilizado. Um crime de roubo. Agravado, digo eu, pela forma como foi decidido. Além de um crime de roubo, estamos perante algo ainda mais grave, o fim da confiança dos europeus no seu sistema bancário. Quando qualquer um de nós vai a um banco e nele deposita o seu dinheiro, as suas poupanças, não o faz apenas por desejar uma determinada remuneração dos seus depósitos. Nos tempos que correm, o nosso dinheiro vai para o banco por uma questão de confiança e segurança - o receio é tal que já nem se discute muito a remuneração dos mesmos.

 

Obviamente, alguns vão lembrar que o a banca cipriota se tinha tornado numa espécie de "lavandaria". É verdade. Contudo, curiosamente, esta medida não visa atacar esse outro crime, o da lavagem de dinheiro. Não. Uma vez mais, a UE aplica a velha máxima de ser forte com os fracos e fraca com os fortes. É que esta medida não ataca as contas "russas" ou de outras paragens do género. Ataca, sobretudo, a população cipriota e as suas empresas. Pagando o justo pelo pecador. Tornando esta medida do Eurogrupo, para além de um crime, uma vergonha.

 

O que está a acontecer no Chipre é um desastre. O sinal que o Eurogrupo acabou de nos dar (a todos, sem excepção) é de uma clareza assustadora: os nossos depósitos bancários não estão a salvo de nada nem de ninguém. Mais, qualquer pessoa, minimamente consciente, percebe que não pode confiar nos bancos europeus, que o sistema bancário europeu está morto. E com ele, a União Europeia.

 

Hoje foi no Chipre. Amanhã pode ser em Espanha ou em Portugal ou noutro qualquer país europeu, basta ver a forma como a crise se está a alastrar pelo continente. Não vale a pena acreditar nas palavras de Olli Renh, já todos percebemos que estamos entregues à bicharada... E já agora, reparem na medida tomada pelo governo inglês: salvaguardou os seus.

 

A Europa está perigosa. Por muito menos, no passado, entrou em guerra. Em suma, estamos tramados...

 

 

Actualização: Por mão amiga, chegou ao meu mail ESTA notícia, uma declaração, a 1 de março do ministro das finanças do Chipre. Assustador... Por isso, se o V. Gaspar declarar que tal medida será impossível de ser tomada em Portugal, vou imediatamente ao banco...