Entre os que fazem opinião no país está a surgir uma narrativa monocórdica com três ideias principais:
A Senhora Merkel enlouqueceu e recusa-se de forma irresponsável a ver a única solução para salvar o euro, ou seja, permitir a mutualização da dívida e deixar o BCE intervir em força, comprando dívida pública dos países. Merkel é uma má europeia (loira burra) e não devia conduzir o processo.
O eixo franco-alemão impos à Itália e à Grécia governos tecnocráticos, não democráticos, que vão aplicar medidas desnecessárias e que apenas beneficiam os mercados financeiros desregulados, os quais apostam na ruína dos povos europeus.
O Governo português não é legítimo e, pelo contrário, a legitimidade está nos protestos de rua, os quais se tornarão violentos dentro de muito pouco tempo.
Estes são os três mitos que tenho ouvido a muitos comentadores e parecem um disco riscado. Nada têm a ver com a realidade, mas entraram de tal forma na linguagem quotidiana, que serão difíceis de contradizer. Penso que são mitos perigosos, na medida em que nos transportam para um universo de ilusão que nada contribui para suavizar a crise.
Tudo tem mais a ver com vizinhanças e condomínios. A crise do euro não deve ser explicada pela irracionalidade alemã, mas sim pela insistência da Alemanha numa estratégia que levará pelo menos dois anos a concluir. Do ponto de vista dos alemães, o problema pode ser descrito da seguinte forma: alguns dos inquilinos não pagaram o condomínio e estão a prejudicar os habitantes do prédio, pois não há dinheiro para realizar obras urgentes. É justo que a Alemanha ponha o dinheiro para as obras urgentes? Os partidos alemães acham que não é justo e não querem pagar a factura que devia pertencer aos outros. Assim, exigem primeiro garantias de que todos os inquilinos vão pagar as respectivas quotas do condomínio, incluindo as atrasadas. Só depois se pensará na resolução das obras urgentes. Do ponto de vista deles, os que habitualmente não pagam insistem agora que cabe aos alemães (que sempre pagaram as quotas) a responsabilidade da factura das obras urgentes. E estes inquilinos em falta estão de tal forma endividados, que querem ver perdoadas as dívidas atrasadas. Os alemães acham tudo isto muito injusto.
Os países credores não vão aceitar facilitismos: a Alemanha considera que não há solução credível sem que isso conste dos Tratados. Se o Conselho Europeu decidir mutualizar a dívida, por exemplo, emitindo eurobonds, o Tribunal Constitucional alemão poderá desafiar essa decisão e inviabilizá-la. Isto não é credível para os mercados e não funcionará. E os países endividados vão ter de pagar as suas dívidas. Boa ou má, esta é a verdadeira posição da chanceler Angela Merkel.
O segundo mito é tipicamente português. A Itália teve vários governos tecnocráticos (aliás, muito bem sucedidos) e a solução não é inédita na tradição da democracia italiana. O governo de Mario Monti depende do apoio do parlamento (as leis têm de passar ali) e começou a trabalhar com apoio de todos os partidos, excepto da Liga Norte. Monti tem 80% de popularidade e 90% dos votos no parlamento. A sua escolha foi negociada pelos partidos e obedeceu a todos os preceitos constitucionais. Em Itália não se elegem primeiros-ministros (uma interpretação portuguesa que não se pratica em muitos outros países).
Quanto à Grécia, a única esquisitice foi o facto de se ter criado um governo tecnocrático para três meses, mas estes não só não pagam o condomínio, mas quase rebentaram com o prédio. Também já ouvi dizer que a Europa rejeitou a solução muito democrática do referendo proposto por Papandreou, mas isto não resiste a cinco segundo de análise: só Papandreou queria o tal referendo, que era rejeitado pelos partidos, incluindo o seu próprio partido.
O último ponto tem a ver com a legitimidade da rua versus legitimidade do Governo eleito há seis meses. O argumento é obviamente absurdo e defendido pelas mesmas pessoas que questionam o processo democrático italiano (queda de um governo que não tinha maioria).
Todas as pessoas têm pleno direito de protestar de forma cívica e de participar em greves, faz parte da liberdade, mas os comentadores falam de situações que não existem, por exemplo, o prolongamento das greves (não ouvi as centrais sindicais a mencionarem isso, mas parece um facto inevitável) ou a violência dos indignados com as medidas governamentais, quando não houve nenhum incidente minimamente agressivo.
Os comentadores comentam situações que não ocorreram, argumentando que podiam ter ocorrido, dizendo que terão forçosamente de ocorrer.
Já aqui o escrevi e penso que serve para interpretar a realidade. Este governo está a mexer com muitos interesses corporativos, da alta finança aos poderes sindicais, das profissões protegidas aos influentes grupos que se sentam à mesa do orçamento. A parte das reformas estruturais é a mais difícil e há quem procure condicionar a actuação do Governo, limitando os efeitos dessas reformas sobre os seus interesses particulares.
A nível europeu, o que se passa é um pouco diferente. Estão a ser criadas novas instituições que vão tirar a liberdade orçamental aos Estados da zona euro. Esta encontra-se dividida em três partes, o céu, o purgatório e o inferno. No primeiro grupo, estão os países com rating triplo A; no segundo, as economias sob pressão dos mercados; no terceiro grupo, os resgatados, incluindo Portugal. A zona monetária a três velocidades é insustentável.
Para passarem do inferno para o purgatório e do purgatório para o céu, os países terão de penar muitos anos, talvez mais de dois. De qualquer forma, o calendário político é exigente: eleições em França em Abril e Maio de 2012, na Itália em Abril de 2013, na Alemanha só em Outubro de 2013. Até lá, haverá a negociação dos Tratados, com substituição do provisório Fundo Europeu de Estabilização Financeira por um Fundo Monetário Europeu com amplos poderes de intervenção no purgatório (talvez o inferno entretanto desapareça). Além disso, criação do lugar do responsável das finanças da UE, com poderes de fiscalização orçamental (e, portanto, capacidade para dizer não a parlamentos). Só então haverá eurobonds. O Parlamento Europeu é capaz de perder poderes e o Presidente do Conselho até pode ser eleito.
Então talvez o condomínio possa funcionar.