Gérard Depardieu não construiu a imagem (nem a carreira) com base na discrição. E numa maré em que outros deram e dão passos o mais possível discretos, Depardieu resolveu pôr a boca no trombone, não hesitando em ameaçar devolver o passaporte francês. Gesto inconsequente porque, para evitar o pagamento de impostos, suponho que não se faz mister abandonar a nacionalidade - quando muito adquire-se uma nova, e mesmo isso apenas se for necessário ou se conferir vantagens no domicílio de adopção.
Mas o dramatismo e a barulheira do gesto são neste caso não apenas de interesse do público, mas também de interesse público - Deus escreve direito por linhas tortas, como se diz.
Importa saber: pode um Estado, em tempo de paz, cobrar sobre o rendimento pessoal de um cidadão 75 ou 85%?
Das notícias que vieram a lume percebe-se que Depardieu co-fundou empresas que empregam à volta de 80 pessoas; e que os seus rendimentos advêm, além do seu próprio trabalho, de negócios legítimos nos quais, explícita ou implicitamente, explora a imagem - a imagem dele.
Todas estas actividades são objecto de impostos, directos ou indirectos, sob a forma de IRC, IVA, etc. E os 75% incidem sobre o que, do que sobra, lhe chega às mãos.
Ao rendimento líquido (após o esbulho dos três quartos) Gérard poderia dar três destinos: ou investir - actividade que, por definição, não é isenta de riscos e que pode de imediato dar ela própria origem ao pagamento de impostos, como nos investimentos em imobiliário; consumir - mas é impossível consumir sem pagar impostos sobre o consumo, aliás exorbitantes em se tratando de luxo, vício ou combustíveis; e aforrar - mas o rendimento do aforro é penalizado com tributação autónoma.
Quer dizer que se está, nos países pilotados por dementes, a querer construir uma sociedade nova: os muitos ricos podem viver bem e acumular algo não superior aí a uns 5% a 10% do rendimento. O resto não é deles, que o ganharam; é da comunidade, administrado por um Estado obeso e uma Administração iluminada, que julga poder eternizar-se no Poder pelo expediente de, cobrando desmedidamente a uns poucos, ter meios para comprar o voto da imensa maioria.
Se isto pudesse funcionar, isto é, se restassem na mão dos privados os recursos e a vontade de investir, teríamos uma sociedade sem os muito ricos, mas conservando a competição e o dinamismo típicos do capitalismo eficiente; e os antigos ricos, agora remediados, desempenhariam o mesmo papel que o dos apparatchicks nos regimes comunistas - uma casta relativamente privilegiada.
Mas não pode funcionar: Os Depardieu fogem. E mesmo que não o pudessem fazer, não teriam os meios nem o incentivo para investir. Um homem rico é um homem pobre com dinheiro - e tem precisamente o mesmo instinto de trabalhar para si e os seus, não para a comunidade que, quando não o trata com indiferença, o trata com desprezo.
É por isto ser assim que há quem tenha o sonho impossível da criação de um Mundo sem lugares para onde se possa fugir. Os comunistas genuínos não sonham com mundos impossíveis: querem ilhas comunistas no mar capitalista, para nelas realizar a sociedade a caminho da perfeição, custe o que custar a quem custar.
Por mim, se tivesse que escolher entre um artigo deletério genuíno e outro sucedâneo, escolhia o primeiro - sempre poupava na hipocrisia e na inveja.