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Forte Apache

Cisão? Que cisão?

Pedro Correia, 19.07.13

Cisão? Que cisão? Em mais de 30 anos de democracia, tenho visto muitos membros do PCP engrossar as fileiras do PS mas não me lembro de um só movimento na direcção contrária. Alguém até hoje rasgou o cartão de filiado no PS para se tornar militante comunista ou bloquista?

Não vale a pena mencionar nomes: poderia indicar aqui largas dezenas de ex-militantes do Comité Central do PCP, de antigos autarcas, sindicalistas ou deputados do partido da foice e do martelo que passaram a rever-se no conteúdo programático do PS. O próprio Mário Soares, que agora acena com esse tigre de papel, fez esse percurso: trocou o comunismo pelo socialismo democrático. E até este, no momento próprio, foi remetido para o fundo de uma gaveta.

Quando certas frases são proferidas, convém enquadrá-las com o mais elementar conhecimento histórico. E o natural sentido das proporções.

 

ADENDA: Também Felipe González lança farpas ao actual líder do PSOE, Rubalcaba: o mundo gira, imparável, mas nem todos se apercebem disso.

Um teste à liderança de Seguro

Pedro Correia, 18.07.13

Mário Soares governou duas vezes aliado com partidos à direita do PS. Enquanto foi primeiro-ministro, viu Portugal sob intervenção do Fundo Monetário Internacional nessas duas vezes: a primeira originou aliás um célebre disco de José Mário Branco, intitulado FMI. Em 2011, segundo ele próprio admitiu, teve uma intervenção decisiva junto de José Sócrates para que o Governo socialista solicitasse uma intervenção externa de emergência destinada a salvar as malogradas finanças nacionais. Lá veio o FMI pela terceira vez a Lisboa, desta vez partilhando a tutela do resgate com a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu.

Este extenso currículo, espantosamente, não inibe agora o fundador do PS de alertar António José Seguro contra o risco de "uma cisão" no partido caso o secretário-geral socialista estabeleça um acordo com o PSD e o CDS. Com uma sobranceria que nenhum notável do PS lhe transmitiu quando ele se entendeu em 1977 com o CDS de Diogo Freitas do Amaral e em 1983 com o PSD de Carlos Mota Pinto.

Soares nunca resistiu à tentação de condicionar as lideranças de todos os secretários-gerais que lhe sucederam no Largo do Rato - de Vítor Constâncio a Sócrates. A deselegante ameaça que hoje deixou no ar constitui um excelente teste para Seguro. Este só pode agradecer-lhe a oportunidade que o fundador do partido acaba de lhe proporcionar para demonstrar a sua efectiva capacidade de liderança.

Mistérios da fé

José Meireles Graça, 03.06.13

Se, no google maps, se procurar "rua Mário Soares", encontram-se resultados na Póvoa de Lanhoso, em Pias (Lousada), Vila Pouca de Aguiar e Vagos; se a procura for por "avenida", a colheita é Abrantes, Oeiras e Chaves. De praças ou pracetas, nada, e nada também para travessas.

 

Isto é estranho: que eu em 1975 já trabalhava e era atento, e se não estive na Fonte Luminosa estive nas Antas e tenho bem presente quem liderou o movimento de resistência anti-comunista. E mesmo que seja verdade, se for, que o PCP recuou na 24ª hora para evitar uma guerra civil; ainda que, se Soares não existisse, outro desempenhasse o papel; mesmo que a nossa localização geográfica, a importância da Igreja, a existência de numerosos pequenos proprietários e empresários, e uma já razoável classe média, tudo se conjugasse para inviabilizar uma revolução tão obsoleta como o partido e satélites que a impulsionavam, nem por isso Marocas deixará de ter o seu lugar na História - uma meia-página se a História for concisa, que é mais do que está reservado às outras personagens que nos povoam a memória da época.

 

Se Soares, cuja marca está tão presente no Portugal desde então, se vê escassamente representado na toponímia, isso é porque, depois do seu papel de herói civil no Verão Quente de 1975, nunca foi mais do que um chefe partidário como os outros, e como os outros votado à experimentada desconfiança e desprezo que os Portugueses reservam aos seus líderes. Ah!, tivesse ele morrido providencialmente, e o País inteiro estaria coberto com urbanizações e pontes e pavilhões multi-usos com o seu nome. E dir-se-ia hoje, com um encolher de ombros desalentado e soturno: se Soares fosse vivo, nada disto teria acontecido.

 

Sucede porém que, com diferenças de grau e de estilo em relação aos colegas da arena política, o Portugal que Soares quis e para o qual trabalhou, é o Portugal que temos: europeu do Sul nos costumes, atento, venerador e obrigado a internacionalismos vários, bem-pensante, com uma diplomacia ágil e competente na chupice de fundos, abrigado debaixo de uma Constituição surreal que garante os direitos económicos de todos desde que os nossos parceiros e os ricos paguem.

 

No Portugal de Soares, a chuva e o bom tempo vêm do Euro, da UE, do Estado patrão e do Estado investidor; e como, subitamente, o Euro se revelou um fato apertado a uns e solto a outros, curto ou comprido nas mangas, e de forma geral de mau corte, por ser a moeda de uma raça de trabalhadores disciplinados nos dias úteis, e borrachões de fim-de-semana; como a UE é um conjunto suspeito de instituições desacreditadas, recheadas de funcionários parasitas e metediços, afogados em privilégios e tretas; como o Estado patrão alargou o número de dependentes até ao infinito, para garantir votos para os eleitos do dia; e como, na pele de investidor, cobriu os montes de ventoinhas, as esquinas de abastecedores para carrinhos eléctricos, e as escolas maternais de computadores para ver as aventuras do Noddy - a bonanza durou o tempo que durou o crédito.

 

É aqui que estamos. O Governo que temos, desastradamente embora, quis pôr ordem na tourada. Pôr ordem na tourada quer dizer fazer marcha-atrás. E fazer marcha-atrás é o nosso caminho inelutável, o da UE e o do papel dos Estados - tudo aquilo em que Mário Soares acredita, e a que dedicou a vida.

 

É a esta luz que se deve interpretar o que se passou na Aula Magna: todos os que lá estiveram querem evitar o inevitável, embora nem todos pelas mesmas razões. E, se me é permitido, mil vezes o velho discurso republicano, jacobino e socialista do homem que, mais do que outro qualquer, é responsável pela abjecção a que o nosso País chegou, do que os arroubos líricos do Professor Sampaio da Nóvoa, que não tem a desculpa de ter uma obra a defender nem uma vida de fé que as consequências abalam todos os dias, mas é reincidente nestas lides.

 

O homem está xéxé, dizem-me próximos. Não está não, digo eu: tem o mesmo síndroma de Cunhal, que manteve a fé no céu terreno mesmo depois da queda do muro de Berlim.

Todo o mundo é composto de mudança

Pedro Correia, 11.05.13

As bochechas do mundo

José Meireles Graça, 09.01.13

Houve há dias uma conferência em Lisboa, sob a modesta epígrafe "Portugal no Mundo", estrelada com personalidades que não se coibiram de dizer coisas a benefício da ilustração das elites mundiais, incluindo Mr. Barroso, o qual no entanto tinha ademais o prosaico propósito de tratar da futura candidatura a Presidente da República.

 

É discutível se o Mundo estaria com grande atenção; e mesmo àquela parte do Mundo, à qual pertencemos, que está em crise, talvez tenha escapado o altíssimo nível das intervenções e o acerto de algumas previsões e diagnósticos.

 

Mário Soares, por exemplo, avisou sem rebuço que "se não se colocarem os mercados no lugar, se pode caminhar para uma terceira guerra mundial". Isto porque "são os mercados que governam e os governos não têm margem, porque não querem ter".

 

Isto é de gelar o sangue: Mário Soares não estará a referir-se apenas àqueles governos que substituíram os socialistas, caso em que bastaria que os eleitorados caíssem em si para tudo se compor, evitando-se a hecatombe da III Guerra Mundial. Não: inclui certamente aqueles que, como o Sr. Hollande, têm impecáveis credenciais democráticas mas esqueceram os ensinamentos da velha guarda socialista, da qual ele próprio e o Sr. Gonzalez, que estava ali mesmo ao lado, fazem parte.

 

O Sr. Gonzalez, aliás, salientou a pouca margem que os governos têm, referindo que "quem manda é Wall Street e a City”. Que se desenganem os ingénuos que imaginam que os desequilíbrios começaram com o Euro, e aqueles que se queixam amargamente da Chanceler, e do BCE, e da evolução demográfica, e da deriva despesista, e do catano: "A crise começou nos EUA", diz Mário Soares. "Fomos vítimas da bolha especulativa”, afirmou o socialista espanhol.

 

Ora cá está: A Senhora Merkel nunca foi um Diabo muito convincente - pode desempenhar um papel abominável mas por trás tem os mercados, a City e Wall Street.

 

Se formos ver a questão de perto, e sem preconceitos, como estes dois lúcidos estadistas, o verdadeiro culpado é a América. Por sorte, para amenizar, está ao leme por aqueles lados um socialista. Mas ai! - também não é da Velha Guarda.

 

Resignemo-nos: a III Guerra vem a caminho.

 

«Não pode haver tolerância nem diálogo com pessoas que nos dirigem 'slogans' injuriosos»

Pedro Correia, 13.12.12

 

«Os manifestantes agitavam bandeiras negras, símbolos da fome, e gritavam "gatuno!", "ladrão!". Mário Soares não ficou parado a ouvi-lo. No dia 30 de Novembro de 1983, quando ouviu esses insultos contra a austeridade imposta pelo programa do FMI, o primeiro-ministro e líder do Bloco Central (coligação PS-PSD) visitava Coimbra acompanhado do ministro socialista Almeida Santos. Semanas antes, o governo anunciara um imposto extraordinário de 2,6% sobre os rendimentos dos portugueses (em 2013, a sobretaxa será de 3,5%). Soares aproximou-se dos manifestantes comunistas que o perseguiam com as bandeiras pretas e agiu. "Passei muito perto deles, aí a uma distância de um metro do local onde se encontravam, a vociferar", contou Soares no segundo livro de entrevistas biográficas à jornalista Maria João Avillez. "Ao lado estava um polícia muito aprumado na sua farda, impassível. Interroguei-o: 'Senhor guarda, o que está aqui a fazer? Não ouve estes insultos? O polícia ficou atrapalhado, mas agarrou no homem cujos insultos eram mais vernáculos e audíveis e prendeu-o."

Na sequência da ordem do primeiro-ministro, três homens e uma mulher foram detidos e presentes a tribunal. (...) Segundo Mário Soares, as bandeiras negras da fome eram uma construção do PCP. "Havia uma equipa de cerca de 200 manifestantes - sempre os mesmos - que andava de um lado para o outro, com bandeiras pretas, para me consultar e insultar. Eram profissionais." No tribunal de Coimbra, o juiz Herculano Namora absolveu os manifestantes. Para os julgar, segundo o Código Penal, era preciso uma queixa (inexistente) do ofendido. Indignado, o primeiro-ministro reagiu assim à decisão judicial, de acordo com o Correio da Manhã da época: "Se o juiz entendeu que não foi um crime público, o problema é dele. Ficamos a saber que esse juiz não se importa que lhe chamem gatuno."

Revoltado com o comentário do chefe do governo sobre a sua decisão judicial, o juiz apresentou queixa no Conselho Superior da Magistratura: "Parece-me que o dr. Mário Soares se precipitou ao comentar a decisão de um órgão de soberania, pondo em causa a independência dos tribunais e da própria magistratura."

Mário Soares não hesitou: se a lei não servia, mudava-se a lei. Na semana seguinte, o Conselho de Ministros alterava o Código Penal, explicando em comunicado que se tornavam públicos, sem depender de queixa, "crimes de difamação, injúria e outras ofensas contra órgãos de soberania e respectivos membros." Se repetissem a graça, aqueles comunistas não seriam absolvidos.

Há uma semana, quase 30 anos depois de liderar o governo de maior austeridade antes do de Pedro Passos Coelho, Mário Soares escreveu no Diário de Notícias: "O povo não existe para o primeiro-ministro e para o seu Governo. Tenha, pois, cuidado com o que lhe possa acontecer. Com o povo desesperado e em grande parte na miséria, corre imensos riscos." Soares também encabeçou uma carta aberta de 70 personalidades a pedir para Passos Coelho se demitir.

Mas quando liderou o Bloco Central coligado com Carlos da Mota Pinto, do PSD, o primeiro-ministro socialista também correu riscos e não era uma figura que agisse de acordo com as regras de comunicação política hoje consideradas normais.

No dia 1 de Novembro de 1983, à porta da fábrica da Renault, em Setúbal, cercada por trabalhadores, Soares gritou-lhes: "Diálogo convosco, só com a polícia!" Segundo a agência noticiosa Anop, o primeiro-ministro justificou-se assim: "Não pode haver tolerância nem diálogo com pessoas que nos dirigem slogans injuriosos." São Bento emitiria um comunicado a dizer que "o díálogo tem regras e perante as injúrias a resposta só pode vir das autoridades policiais".»

 

Excertos de um extenso artigo de Sara Capelo e Vítor Matos, intitulado "As cargas policiais de Soares", publicado hoje na revista Sábado.

 

Imagem: Mário Soares na Marinha Grande (Janeiro de 1986)

Seguro deve escutar González

Pedro Correia, 03.12.12

 

A esquerda radical nunca perdoou o reformismo de Mário Soares. O fundador do PS descolou o partido da órbita comunista, integrando-o ainda antes do 25 de Abril como força autónoma da oposição à ditadura. Após a Revolução dos Cravos, Soares liderou o PS no combate ao extremismo esquerdista - e foi mil vezes atacado por isso. Enfrentou com sucesso as tentativas do PCP de hegemonizar a esquerda portuguesa, fez alinhar os socialistas com a social-democracia europeia, opôs-se aos militares radicais que após 1976 pretenderam manter a tutela sobre o poder civil, decretou políticas de contenção financeira quando esse era um imperativo patriótico destinado a evitar a bancarrota, encaminhou o País para a integração europeia e nunca hesitou em separar águas na defesa permanente da democracia representativa.

Este é o Soares que todos conhecemos. Já o Soares dos últimos anos, que parece querer transformar o PS numa espécie de partido irmão do Bloco de Esquerda, está irreconhecível. Porque desmente a todo o passo a sua própria biografia política - uma biografia que sempre se opôs ao "frentismo" de esquerda, ao aventureirismo extremista e a todas as tentativas de cortar o passo à democracia representativa, nomeadamente através da diminuição do papel do Parlamento no conjunto das instituições políticas portuguesas.

 

O Soares de 2012 diz coisas semelhantes às que o PCP disse dele quando foi Governo, entre 1976 e 1978, primeiro, e de 1983 a 1985, depois - dois mandatos que decorreram sob o signo da crise financeira e da intervenção de emergência do FMI para sanear as contas nacionais. Também os comunistas disseram então que Soares queria "destruir a democracia". Também os comunistas se apressaram a passar certidões de óbito aos governos que liderou. Também os frentistas de esquerda chegaram a propor Executivos "de iniciativa presidencial" sem o recurso a eleições, como mandam as boas regras democráticas. Também a esquerda radical lhe apontou por diversas vezes a porta da rua, para "mudar de política".

Bem fez António José Seguro, através do seu líder parlamentar, ao lembrar ao fundador do PS que os governos não caem por pressão das ruas ou de cartas abertas: a democracia tem regras próprias que devem ser respeitadas. Era isso, aliás, que o Soares das décadas de 70, 80 e 90 defendia - por vezes contra fortíssima pressão partidária e mediática. É isso que, estranhamente, o Soares de 2012 parece ter deixado de defender.

 

Tudo isto sucede quando outra figura de referência do socialismo europeu, Felipe González, recomenda aos socialistas espanhóis um percurso inverso ao que Soares hoje defende: em vez de um partido a caminhar cada vez mais para a esquerda, o homem que há 30 anos levou o PSOE a um triunfo esmagador nas urnas aconselha os seus pares a retomar a "vocação de maioria" para recuperar o centro.

"O PSOE [Partido Socialista Operário Espanhol] perdeu a vocação de maioria e tem de recuperá-la. Tem de conseguir isto encarando a sociedade e auscultando as suas necessidades. Não de forma sectária, mas com espírito de consenso." Palavras de González que Seguro deve escutar com atenção. Por estarem em linha com as teses do Mário Soares que venceu eleições em 1976, 1983, 1986 e 1991. Não com o Soares que saiu derrotado das presidenciais de 2006 e desde então parece caminhar em colisão com a rota que sempre traçou.

 

Imagem: Felipe González e Mário Soares (2010). Um quer hoje os socialistas a virar ao centro, outro defende um PS ainda mais à esquerda

 

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Importa-se de repetir? (XX)

Sérgio Azevedo, 29.11.12

Ao que parece Mário Soares lidera um movimento que assinou uma carta aberta ao Primeiro Ministro para que o Governo mude de política ou então se demita. A contestação, em democracia é normal e até saudável. Até ai tudo bem. Mas quando é o "bem posto" da vida democrática, Mário Soares, a liderar um movimento contra seja o que for, é sinal que está tudo explicado. Se houve personalidade que sempre se aproveitou e tirou partido de qualquer regime foi este senhor. Agora, é só tirar as ilações...