o Hino
A Grândola foi porventura a única coisa verdadeiramente consensual na Manif. Porque os descontentes que lá estiveram, irmanados no que rejeitam, não se entendem no que querem.
Os desempregados querem emprego, mas se perguntados sobre como criá-lo ou se refugiam na receita do PS, que já provou só ser possível com endividamento; ou na do PCP ou do BE, que conduz a uma Cuba com mau tempo, que só os comunistas, ingénuos e desesperados desejam; ou se queixam amargamente dos ladrões da Troika, cujo perdão de dívida libertaria, acreditam, os meios para investir.
Os reformados não aceitam que o Estado tenha quebrado o contrato sinalagmático que tinha com eles, acreditando que se tivesse antes quebrado os contratos com capitalistas que financiaram o delírio das obras públicas não precisaria de chegar a estes extremos.
Os jovens queixam-se de que foram vigarizados, tendo suado as estopinhas para obter um diploma que agora nem podem pôr na parede, por falta de recursos para comprar a moldura.
E todos se queixam da Merkel, do Passos Coelho, do Relvas, dos partidos, do BPN, da banca, dos plutocratas e da "direita". E os que não vivem da caridade pública e privada, de familiares e instituições, gemem sob o peso de impostos irracionais ao ponto de o que sobra da punção fiscal nem sequer permitir a vida como antes, quanto mais o aforramento.
Ninguém faz contas. A meu ver, muito bem, que se pomos um capataz a tomar conta da quinta é para que ele se ocupe da gestão e da intendência. E como a quinta está falida e ninguém percebe como se regressará aos dias toleráveis, procura-se desesperadamente, no meio de um grande berreiro, um novo capataz.
O novo capataz acabará por vir, porque vem sempre.
Atrás desta manifestação outra surgirá. Os descontentes sentir-se-ão, por um momento, menos descontentes: partilhar as nossa dores e dissolvermo-nos em algo maior do que nós é um conforto. A Situação experimentará algum alívio: vá lá que é só cantorias, ainda não incendeiam automóveis nem partem montras. A oposição comunista e afiliada esfregará as mãos: épá, as contradições do sistema capitalista estão-se a aprofundar, a Revolução está na ordem do dia; e a oposição socialista sonhará com o regresso a um módico de tachos, logo que as contas estejam minimamente equilibradas e desde que a "Europa", para salvar o Euro, continue a fazer transfusões, mas reforçadas e a preço de saldo.
Eu, é claro, não fui à Manif. Em cada rosto igualdade? Deus me livre - eu é mais em cada rosto diferença. Hinos nos quais caibam as diferenças todas só me lembro de um, o Nacional, e esse brilha pela ausência.
O que não quer dizer que, quando todas as quimeras se esvaziarem, não seja o único que restará no fundo do poço das nossas ilusões.