O ex-libris do ex-BRIC
As manifs no Brasil não têm propósito ou, melhor, têm os propósitos de cada grupo ou manifestante que se queixa do Estado porque é corrupto ou incompetente, porque não fez o suficiente pelos pobres, porque os políticos, mesmo os sérios, têm um estatuto e proventos que são para a maioria dos cidadãos uma miragem, porque há ainda, e cada vez mais, milionários cujo nível de vida é visto como um insulto para os que apenas têm um par de alpergatas, um prato de feijão e uma renda mínima; e ainda pelos comunistas, radicais e lunáticos de múltiplas declinações, especialistas da rua porque só ela lhes pode dar poder (a democracia burguesa do um homem/um voto pode eleger demagogos como Dilma, trapaceiros como Collor, e sindicalistas como Lula, mas comunistas só se forem travestidos de outra coisa qualquer). E há lugar ainda para os que farejam que os breves anos do crescimento via aumento de consumo e exportação para os outros tigres estão à beira do ocaso, que o acordo tácito entre o lulismo e o capital (pagais mais um pouco, com isso distribuímos milho aos pardais, e a bomba-relógio da revolta fica desarmada) já deu o que tinha a dar, e para inúmeros outros que acham que o Estado faz coisas que não devia fazer (estádios de futebol, por exemplo), em vez de lhes dar o dinheiro a eles.
Gente conhecedora da realidade brasileira, e sábios, grupos aos quais não pertenço, haverão com tempo de encontrar pontos comuns entre esta primavera e as outras que a antecederam ou que ainda decorrem, e falarão de redes sociais e aumento do nível de conhecimento, e por conseguinte de exigência, das massas, e de outras coisas que ignoro. E explicarão, caso a caso, as imensas diferenças: um Brasileiro não é um Turco, e os dois não fazem decerto um xiita ou sunita ou wahabita, ou qualquer outro dos fanáticos que por aqui ou por ali se matam alegremente.
Por mim, e enquanto espero que me iluminem, não dou nada para o peditório da suposta superioridade moral desta multidão festiva. Primeiro porque não sei o que pensam os que estão em casa, e esses são uma imensa maioria; depois porque o poder do dia, abominável a meus olhos, foi eleito e não tem feito nada que seja radicalmente diferente do previsível. E finalmente porque o exercício do direito à manifestação implica uma medida e um propósito: a medida consiste em não contender indefinidamente com os direitos, que são comprimidos, de quem não se quer manifestar; e o propósito consiste numa intenção anunciada. Os manifestantes contra a guerra do Vietname queriam que os soldados regressassem; os Líbios queriam o fim do regime de Khadafi (os que queriam). Estes nossos irmãos folgazões querem o quê? Mistério - até, muitas vezes, para os próprios.
O Poder já cedeu às reivindicações concretas (aumento do preço dos transportes, p. ex.), coisa que aliás não deveria ter feito, a menos que reconhecesse, com boas razões de interesse geral, que foi um erro. Porque se o Poder eleito cede perante a berrata porque tem medo, ou escolhe a facilidade, sem explicar claramente os seus motivos, o que a rua conclui é que ganhou. Mas a rua só ganha na aparência: há sempre o risco de aparecer o clássico caudilho para cavalgar o descontentamento.
O caudilho pode estar na própria Presidenta - a personagem de gramática sabe nada mas de rua, pés-descalços e demagogia sortida pede meças ao seu mentor, o intocável Lula.
Não vai suceder, creio. Que esta multidão cansar-se-á, e o Planalto atirará possivelmente mais algum milho aos pombos, e um açafate de promessas de virtude.
Pobre BRIC.