Perplexidade
Imaginem o terramoto político que haveria em Portugal se o poder legislativo ou o executivo interferissem nas decisões judiciais. Tal ingerência violaria um dos fundamentos do sistema democrático, assente na separação de poderes, e seria certamente denunciada pelos juízes.
Tão condenável como este cenário hipotético é a tentativa real de condicionamento das decisões políticas por parte do poder judicial. Confesso portanto que foi com espanto que escutei o juiz Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, exprimir ontem no Parlamento a sua oposição frontal aos cortes orçamentais previstos para os titulares do poder judicial, que não podem estar isentos dos sacrifícios que são exigidos a todas as classes profissionais do País.
O meu espanto deveu-se sobretudo aos argumentos invocados. "Gostaria de chamar a atenção para uma situação que hoje começa a ser perigosamente preocupante para a independência dos juízes: as pessoas são independentes por via dos princípios que defendem, por via das leis que têm, mas também são independentes se tiverem uma componente financeira que lhes permita exercer as suas funções com dignidade e não estarem sujeitas a qualquer tipo de pressão. Há que assegurar aos juízes uma independência financeira suficiente para que a sua independência no acto de julgar seja efectiva. É isso que começa a ser posto em causa hoje em Portugal", disse Mouraz Lopes, em declarações recolhidas pela SIC. E à TVI o presidente da associação sindical afirmou o seguinte: "Os juízes têm que ter uma capacidade económica, estatutária e financeira que lhes permita dizer não. E dizer não sem medo."
Acho preocupante que a independência dos juízes - titulares de um órgão de soberania imprescindível no sistema constitucional português - flutue à mercê de condicionalismos financeiros. E que a sua capacidade de dizer "não sem medo" a pressões indevidas possa depender dessas circunstâncias, como parece inferir-se das palavras de Mouraz Lopes. O primeiro dever de um juiz é ser independente. E quem possa sentir abalado este princípio - que deve ser sagrado - devido a cortes de suplementos remuneratórios e à redução de ajudas de custo certamente errou a vocação.
Eu sei que não é fácil ser juiz. Mas milhões de portugueses sonhariam auferir o salário de um magistrado, que em início de carreira recebe entre 1800 e 2000 euros líquidos, acrescidos de 600 euros de subsídio de alojamento.
É legítimo que queiram melhores condições. Mas é inaceitável que façam depender o grau de independência do estatuto remuneratório. E é inimaginável que sintam "medo" na razão directa das medidas de contenção financeira que possam afectá-los.
O presidente da Associação Sindical de Juízes - que ainda antes de ser conhecida a proposta de Orçamento do Estado para 2013 já a considerava eventualmente ferida de inconstitucionalidade por conter um "brutal aumento da carga fiscal" - volta a interferir num domínio que está reservado à Assembleia da República.
E regresso ao princípio: imaginem o que sucederia se o poder político procurasse condicionar as sentenças judiciais.
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