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Forte Apache

Diário de ideias soltas (8) Os sonhos do trader

Luís Naves, 28.09.11

Convém ver com a máxima atenção o vídeo colocado mais abaixo pelo José Aguiar da entrevista da BBC ao trader Alessio Rastani. Em três minutos, coloca mais problemas sobre o mundo em que vivemos do que a análise do melhor filósofo. O Ricardo Vicente, também neste blogue, já fez um comentário muito pertinente sobre as expectativas dos investidores e a manipulação incluída nas afirmações: o trader quer ganhar dinheiro e por isso tem incentivo em criar pânico. A ideia do medo foi também abordada por José Adelino Maltez.

Devemos olhar para isto como manipulação, mas no entanto temos de nos interrogar sobre a ideologia triunfante aqui revelada. Rastani diz que quem manda é a Goldman Sachs. Julgo que se refere ao poder financeiro. Para ele, aqueles senhores eleitos que se reúnem em importantes cimeiras não mandam nada e as suas decisões, os seus pacotes de salvamento, são irrelevantes para a Goldman Sachs.

 

Mas o verdadeiro poder alimenta-se de recessões, sonha com elas. Milhões de pessoas vão perder as suas poupanças, prevê o trader, antecipando os lucros que terá ao apoderar-se desse dinheiro.

Este é um poder que já não fabrica nada, que aliás acredita em fechar fábricas e em destruir o estado providência que deu alguma segurança a milhões de pessoas que trabalharam toda a vida e que, em breve, vão perder tudo, cumprindo o sonho do trader.

Este é o futuro radioso de um mundo dominado pela ganância e não pela democracia, aqui confessado com inocência, muita "candura", como diz a entrevistadora.

E permitam-me as perguntas: o poder é inocente? Isto é sustentável? Se os modelos de capitalismo estão falidos e acabaram as ideologias, o que se segue? Como irá a Goldman Sachs manter o seu poder depois de ter embolsado todas as poupanças de milhões de pessoas? E quando já não houver ninguém para esfolar? E que vão fazer aqueles senhores eleitos, vão eles também financiar os sonhos do trader?

Diário de ideias soltas (7)

Luís Naves, 19.09.11

Os portugueses são demasiado tolerantes com a hipocrisia e perdoam facilmente todos os crimes que tenham a ver com abusos de poder. Isto é algo que nos distingue de outros países, onde os hipócritas desmascarados são trucidados na praça pública ou onde tudo o que mexa com o dinheiro da comunidade implica severos julgamentos sociais. O rigor é mais forte em nações onde domina a tradição protestante, da Suécia aos Estados Unidos, passando pela Alemanha, Holanda, entre outros.
É pena que em Portugal os hipócritas se salvem sempre. Os portugueses esquecem o que foi dito no passado; e, se detectam as contradições, preferem encolher os ombros. Há várias maneiras de lidar com o incómodo, por exemplo a indiferença, mas também o facciosismo (fulano é da minha tribo) ou a sobranceria (é lá entre eles).
Um método cínico de perdoar a hipocrisia ou os abusos de poder é o de juntar tudo no mesmo saco. É o que está a ser feito no caso da Madeira. Confrontado com uma dívida oculta da região autónoma, o Governo vê gravemente atingida a sua estratégia de distinguir Portugal da Grécia. E, no entanto, como se trata do PSD, parece que a culpa é de Passos Coelho. É convenientemente esquecida a conivência de todos os governos anteriores com Alberto João Jardim e o silêncio dos restantes políticos. Também é esquecida a dívida, acumulada sobretudo nos últimos cinco anos, que nos levou à actual situação de pedintes.
Provavelmente, o populista Jardim continuará a ganhar eleições. Continuará a fazer afirmações delirantes e a chantagear os cofres da república. Esta é uma história que envolve irresponsabilidade, deslealdade, estupidez. Mas há uma consequência imprevista, a meu ver, positiva: este será o fim da regionalização.
A partir de agora, quando alguém quiser iniciar um debate sobre a regionalização no País, ouvirá imediatamente duas perguntas: “Para quê? Para termos muitas Madeiras?”
Fim de conversa.  

Diário de ideias soltas (6)

Luís Naves, 15.09.11

Não imaginamos o que é viver no fundo do poço e olhar desesperadamente a luz lá em cima. No Paquistão vi alguma da miséria humana mais desgraçada. Certo dia, um grupo de viúvas de guerra, refugiadas do Afeganistão, juntou-se à minha volta. Julgavam que eu era da ONU e que estava ali para as ajudar, o que não podia de todo. Nesse dia, tive um vislumbre do que é viver no inferno das mulheres abandonadas. 

O caso de Asia Bibi, de uma aldeia da região de Ittan Wali, ocorreu em Junho de 2009 e é uma dessas histórias que julgamos do domínio da imaginação mais cruel. Trabalhadora do campo, católica (há 3 milhões de católicos no Paquistão), entrou em conflito com as vizinhas muçulmanas, também trabalhadoras rurais, por ter bebido do cântaro comunitário, conspurcando a água das outras. Seguiu-se uma discussão, um ataque à família, e acusação de blasfémia, que o chefe da aldeia terá apoiado. Segundo os acusadores, Asia Bibi insultou o Profeta Maomé, o que lhe valeu a condenação à morte por um tribunal religioso. A sentença de enforcamento terá de ser confirmada por um tribunal superior e, entretanto, a mulher continua presa e em risco de ser assassinada. Este processo já provocou a morte a dois altos responsáveis paquistaneses que tomaram a defesa desta vítima de discriminação. E caso o presidente Asif Zardari decida o perdão, os vizinhos já disseram que farão justiça pelas suas próprias mãos.

Esta situação ilustra de forma brutal a maneira como muitos asiáticos ainda hoje vivem. Não se pense que é um exclusivo das zonas de maioria muçulmana. Na vizinha Índia, num passado não tão remoto, os intocáveis (quase um quarto da população indiana) não podiam sequer deitar a sua sombra sobre alguém de casta superior. Tocar fisicamente era tornar impuro, quase dá para entender, na sua estúpida irracionalidade. Mas a própria sombra poder conspurcar alguém? Por incrível que pareça, muitos intocáveis (ou dalits) pagaram com a vida por não estarem atentos ao chão onde a sua sombra caía. Esta prática passou de moda, mas a discriminação mantém-se para muitos dalits, que são mais de 250 milhões de pessoas. 

Diário de ideias soltas (3)

Luís Naves, 07.09.11

Muito perto do décimo aniversário do 11 de Setembro, somos bombardeados com a obsessão mediática em torno desse acontecimento. Na verdadeira indústria que se criou, vendem-nos a tese de que os atentados mudaram o mundo.

Não quero desvalorizar, mas muito do impacto vem da circunstância de termos visto pela televisão. O mundo não mudou assim tanto, nem sequer a América: os aeroportos ficaram infrequentáveis, existe uma paranóia geral com a segurança, a hiperpotência fez duas operações de polícia que não deram em nada, os radicais islâmicos produziram muito ruído, atacaram e mataram, mas sem mudarem coisa alguma. É tudo.

Numa dimensão política, 2001 deixou o mundo mais ou menos na mesma. Os Estados Unidos por algum tempo namoraram a ideia utópica do unilateralismo, mas entretanto foram forçados a reconhecer os seus limites. Os atentados foram brutais e mataram quase 3 mil pessoas, mas não me parece que tenham demonstrado uma vulnerabilidade fundamental nas sociedades contemporâneas. Pelo contrário, o poder do Ocidente é esmagador.

Dez anos depois, o que vemos? Cada vez mais conscientes da respectiva fraqueza, os países árabes tentam livrar-se das ditaduras e querem conciliar o Islão com democracia parlamentar (o inverso do que pretendiam os radicais). O petróleo tende a ficar mais caro, mas isso não se deve a factores geoestratégicos, mas à sua crescente escassez.

O mundo em que vivemos é sobretudo dominado pela crise do capitalismo. E isso não tem qualquer relação com 2001. Tem muito mais a ver com 1989. Esse, sim, o ano em que o mundo mudou, a História a funcionar como uma lente, concentrando todos os acontecimentos.